quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Funeral

I
"Onde está o meu corpo?! Quem me devolve?! Eu queria tanto ficar com ele. Ainda essa vez! Nesse mundo, em outro mundo; ao menos dentro de mim.
O que há em mim? Qual a forma? Beleza não há em mim. Ainda essa vez, murmuro nesse deserto. O sonho enlouquece?
II
Não sinto os demônios e males que esperava. E nem o pesar pelo sol que já amei. Não há beleza, emoções e lembranças. Tudo de que me lembro se tornou pó. Deus não mais existe. O sonho enlouquece...
III
A campa é de pedra. Alguém está deitado e olha para o céu. Nada se move. Um homem caminha em volta e não se importa. Não acredita mais no vazio do coração. Ele foi preenchido com as rochas de todas as multidões e coisas inúteis desse mundo. Ele sai e um portão se fecha"

VINGANÇA

Você gostaria de ser uma boa pessoa? Não é justo sentir paz quando quem você ama não atinge seus objetivos. Você terá sorte se não pisarem na sua desgraça. 

UM QUARTO




Por maior que ele seja, o amor é basicamente solitário? Ou não se quer reconhecer isso? Enquanto se está com quem se ama, pode não haver tempo para perceber certas verdades. Mas o que se pode pensar quando se está só? Até onde será ilusão o darmos ao outro o que temos de mais caro? Levar isso tão a sério pode ser uma maneira de não perder esse amor.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Performance de "Maria Madalena" - Ensaios



Ensaiei durante dois dias para fazer o teste no Estação Madame hoje. Pretendo mostrar uma performance da figura de Maria Madalena. Usarei figurino. Um vestido negro medieval e uma colcha também negra. Esta servirá como cenário.
Meu objetivo é ser aprovado para mostrar meu trabalho na próxima edição do evento, que é na virada de quinta para sexta-feira. Pelo menos, entendi que já poderia me apresentar nessa ocasião.
Não sei se consigo passar, mas verificarei a possibilidade de continuar me aprimorando e fazendo teste até conseguir. Preciso fazer cada vez mais teatro para render no curso puxado que faço no ETA (Estúdio de Treinamento Artístico). Até estudante universitário faz essa escola por causa do seu rigor.  Eles também esperam que o aluno busque o máximo de experiências possível fora das aulas.
Fico curioso se for o caso de eu levar Maria Madalena regularmente para a cena.  Até que ponto eu poderia melhorar? Sentirei mais orgulho da personagem? Eu só fiz uma apresentação, que foi na segunda edição do Sarau no Jardim de Perséfone, em março desse ano.
 Nos últimos ensaios, introduzi coisas novas e me tornei consciente de outras que poderia melhorar. No segundo caso, aumentar a força da voz, variar a expressão facial e aproveitar melhor o espaço da cena para a movimentação não se tornar repetitiva e isso contribuir para um eventual desinteresse do público.
Quanto às novidades, elas têm muito a ver com o que treinei no ETA. Por exemplo, não dar as costas para o público. Outra, deixar o rosto sempre visível para ele. Na minha interpretação dessas orientações, o objetivo é trabalhar captar ao máximo a atenção do público. O método de que deriva esses exercícios é o do realismo de Stanislavski, que visa a produzir na audiência a ilusão de o que está sendo mostrado na cena ser muito parecido com a realidade. Certamente, não é um teatro experimental. Calhou de eu me predispor a essa visão de atuação por conta de, há alguns meses, ter interrompido o contato com literatura experimental e estar me dedicando a projetos com romances do século XIX, mais clássicos.
A mais importante inovação é, indubitavelmente, o improviso. O texto era o mais importante no passado. Agora, ele funciona como base, mas não exige uma declamação literal. Com o improviso, posso inserir mudanças no texto em plena apresentação. Lógico, desde que não saiam da lógica da personagem e da ideia central.  Para o ETA, improviso é tudo. E vamos lá.

sábado, 4 de outubro de 2014

ETA - Ensaio em 05/10/2014

ETA


Amanhã começo a ensaiar com o grupo com que apresentarei um espetáculo no final do semestre no ETA (Estúdio de Treinamento Artístico). As três primeiras aulas me pareceram eliminatórias. Minha confiança no meu talento artista chegou ao limite. Improviso é a base da formação do ator nessa escola. Para mim, improviso era a pior coisa possível para um artista. Quer dizer, se ele conseguir fazer dar certo, está no lucro, levando-se em conta a delicadeza da situação. Mas não seria ocupado muito tempo de sua preparação com o improviso. Por incrível que pareça, tive que aprender a usar o bom senso e a relativizar algumas coisas que o ETA, teoricamente, exigia no material de aula que eu tinha recebido, além das informações preciosíssimas do site. Agora é hora de equilibrar o Laguna sistemático e o Laguna do FDS.
É só no grupo que o improviso, pensei, pode fazer sentido para mim. Será mais fácil guardar cara, nome, voz, corpo, movimentação, o jeito, em geral, da turma. Sem contar que há merdas, alegrias e rotinas que podem acontecer por conta das relações pessoais, obviamente. E isso por alguns meses.
Conseguimos fechar um local para ensaiar e temos, ao menos, duas  ideias para escolhermos uma para nossa primeira cena. Nos reuniremos às onze horas e já iremos direto para o ETA, às 13h30. Uma colega propôs a iminência do encontro entre um, digamos, nerd solitário e uma garota maravilhosa. Pecado meu, mas não consegui entender a ideia da outra colega. Sei que o tema também era falha de comunicação em redes sociais. Mas era bem mais complexa a proposta. Se se mantiver as coisas como estão, escolherei com certeza a inciativa da primeira moça. Daria para fazer, dessa forma, um trabalho mais concentrado, nesse contexto de tantos aspectos a serem tratados.
  É um ponto eu não ter muita noção de feriado ou algo equivalente. Votarei e logo irei ensaiar. Durante toda minha vida na universidade, minha folga era no final de semana. Não “entendo” quando o feriado é na semana. Tanto que até hoje, só em último caso eu abro mão do final de semana.
Nossa cena deverá ter cinco minutos e a mostraremos na aula. Fico curioso a respeito de duas horas ser tempo de sobra para quase dez pessoas discutirem ideia, personagem, conflitos, improvisar, etc. Quer dizer, é muito intenso, mexe com o coração, fazer esse monte de coisas e com um monte de gente? Nunca tive a experiência. Imagina um trabalho desses sendo impiedosamente julgado por professor e alunos. E digo impiedosamente porque também faço o mesmo.  É comum se ouvir nas aulas “está uma bosta” da parte do professor. Eu lembro de um outro professor que tive. Se não comprometer a autoconfiança, dá para ter bom humor.  

sábado, 27 de setembro de 2014

Visita

I
Acorda-se de um sonho com a visão embaçada. Ainda não acabaram seus efeitos, seus desejados efeitos, e olha-se para o céu brilhante - mas enevoado. Uma visão embaçada, um brilho nos olhos de fantasma. São olhos vaidosos, solitários. Uma brilhante solidão. Sorri-se como se nada ao redor importasse. Não há dúvida de que seja vaidade: transformar o céu na própria imagem confusa que vem do interior.
É o passado, transformado pela imaginação de seu desejo sombrio. Pode ser uma ilusão. E ela pode demorar se à volta estão as pessoas a quem se ama. (Todos veem seus olhos vidrados).
Será um passado ilusório, mas completo - mais que completo. Sabe-se que o futuro existe. Mas não há necessidade alguma de se pensar nele.
O que há, no fundo, não é o amor, mas a vaidade dessa brilhante ilusão. Não é o amor de si próprio. É a negação da própria vida ao se controlar o que está dentro e transformá-lo em rabiscos que podem ser aperfeiçoados infinitamente. Rabiscos próximos às pessoas a quem se ama. Um mundo dentro da morte; mas o amor, à reboque.

II

Surdo aos que o amam, o sonhador desvia o olhar para alguém que está longe, mas em sua direção. Eles se olham e aparentemente se conhecem. Porém, estão impassíveis. O sonhador e o visitante dirigem-se a uma sala que surge no ar impregnado com a visão embaçada do primeiro. Lá encontram apenas duas poltronas, sentam-se conversam:

- Você lembra dessa sala?
- Sim, foi há muitos anos. Mas havia muita gente e estávamos em festa. Você me surpreendeu, vestido de uma maneira completamente estranha para a ocasião e se dirigindo a mim como se falasse em um poema.
- Não havia o que fazer. Nem agora há. Na época fez todo o sentido para você acreditar que nossos corpos podem desenvolver uma eternidade específica. Quer dizer, dependendo de como a luz incide em nós, somos velhos ou novos. Também falei sobre isso não ser um dom. Como é comigo, o seu coração encheu-se de um desejo de autodestruição constante. Uma angústia sem limites, pois não podemos mais tirar a própria vida. Como você se sente agora?
- Minha vida não dependia mais de mim, eu era um autômato. Porém, não enlouqueci para que mantivesse a consciência. Algo fez isso comigo. Se é que o tempo é para nós o que é para os outros, a única coisa que podia fazer era contemplar minha desesperança. Quer dizer, logo fui tomado pela convicção de que não haveria mais esperança e esse sentimento não cessaria. Minha rotina passou a ser a reflexão completamente inútil sobre essa desesperança.  O que eu posso dizer? Para haver reflexão, deve haver algum espaço para a serenidade e a paz. No entanto, esses sentimentos estão contaminados por causa de todo esse processo que você descreveu. Essa paz e serenidade são, agora, impressões de uma morte que está sempre por vir. Como você está?
- Nosso encontro é fortuito e inútil. Mas estamos conversando. Quando você apareceu, eu tinha acabado de sonhar. Eu pensava sobre o amor e em como sou uma pessoa ruim. Não sinto pesar, pois você sabe que nosso hábito de refletir sobre sentimentos afasta as pessoas, nossas emoções são artificiais. De tanto pensar, o amor tornou-se uma espécie de minério. Aquele mesmo que vivi e o que continuamente destruo. Eu não amo as pessoas. E elas se enganam por algum tempo. Como vivo um contínuo sentimento de autodestruição, não tenho esperança alguma em minha bondade. Não dá mais para acreditar que há a bondade nas pessoas e admirar isso, amar isso.
- Eu também não tenho interesse nenhum naquilo que faço. Realmente, nosso encontro é fortuito e inútil. Não te procurei, não te amo. Você também não me ama. Olhamos um para o outro apenas para ver nossa desesperança. Sou tão indiferente que não há em mim absolutamente nenhuma possibilidade de acreditar que, supondo a existência de Deus, haja nele ainda algo de bondade e amor. Eu não me comovo. Isso só me veio à mente agora porque somos não um, mas dois desesperados aproveitando essa ocasião para, juntos, aprimorarmos nossa convicção de que, em um momento, simplesmente não entenderemos as outras pessoas.

Rolê

Em quase dez anos, eu nunca imaginei que poderia ter tanto envolvimento com o rolê. Semana sim, semana não, eu ia ao Madame Satã e congêneres. A minha desculpa para não ser mais assíduo era que meu corpo não se adaptava muito a essa rotina. Porém, analisando essas duas últimas sextas-feiras, tenho que rever meus conceitos.
         Em primeiro lugar, dois programas muito bons. No primeiro,  discotecagem e companhia excelentes. No segundo, dançando como um louco e, não atinava com isso, escrevendo muito depois que cansei de dançar por horas.
         Além disso, meu condicionamento físico está bom. O fato de o teatro ser a minha vida faz com que eu procure estar com a maior disposição possível para acompanhar, entre outras atividades, os exercícios físicos que realizamos no ETA (Estúdio de Treinamento Artístico) no domingo.
         Dessa forma, e me programando bem financeiramente, dá pra fazer algo todo final de semana. Nunca me imaginei aproveitando o rolê dessa maneira.

         Falei sobre a contribuição de meu envolvimento com o teatro nessa nova experiência com a noite. Porém, escolhi um dia que simplesmente bate de frente com a regra, que é o entretenimento virar de sábado para domingo. Sexta-feira, só no Madame, ou em casos excepcionais - como foi hoje -, o Cambridge.  Simplesmente perco noventa por cento do que poderia curtir. Fora outros programas que não tem nada a ver com o rolê, repito, só no Madame tenho alternativa. Vou ter que me virar.

sábado, 20 de setembro de 2014

Instante

Falsa beleza e falsos pensamentos e sentimentos. Quem pode julgá-los? Quando pode julgá-los? Quero acordar amanhã. Uma lembrança pode valer por uma vida inteira? Despedir-me de uma boa lembrança. O que é belo pode não brilhar, mas ser apreciado por quem deixa que ele siga seu próprio rumo.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Joana

Fonte Times New Roman, tamanho 16, espaço duplo e três folhas. É a parte material do texto em que vou basear meu monólogo. Seu nome é "Joana". Um dos problemas que verifiquei depois de algumas declamações é que as frases são muito longas. Aí, caio novamente na tentação de poesia lírica, que, no momento, dificultaria minha formação como participante de companhia de teatro. Pela primeira vez, fiz uma pesquisa de contexto bem maior do que em toda minha vida. Creio que faltaram algumas coisas, mas, por ora, é o que dá para fazer.
Por conta das entonações que quero dar, alguns movimentos e, o que chamo de música interior, Joana é uma personagem poética, dependente da poesia, do que autônoma enquanto constituição histórica. Quer dizer, ela só passa a ganhar vida para mim enquanto as palavras que escrevi me estimulam. É a partir do "barato" das palavras que me animo e construo a personagem dentro de mim. O que é que isso vai virar? Eu não sei se tomarei espaço de gente que tenha mais o que mostrar do que eu. Porém, vou me jogar no palco. Diante de algumas coisas em que estou pensando, e da atitude que venho assumindo em relação ao teatro ser meu destino, me permito a arrogância. Quem vai se ferrar, na pior das hipóteses, serei eu mesmo. Se é que dá para falar em se ferrar; se é que isso não é relativo.

É estranho, mas essa atitude que julgo mais independente é algo com que nunca tinha atinado antes. Tenho um projeto de vida depois de que o último foi elaborado há mais de dez anos. Porém, naquela época, eu considerava o reconhecimento externo. Não que isso não seja importante agora, mas é que fiz muito tentativa-e-erro e estou escolhendo ser feliz com muito mais consciência do que antes e, no limite, sabendo que ninguém irá me ajudar. Nessa situação, parece que a “luta pela sobrevivência” faz com que eu explore mais determinadas maneiras de tomar decisões e de me planejar para levar o projeto avante.

Futuro

Este é o texto em que pretendo basear meu monólogo no ETA


"Eu faço de tudo para me sentir bem com o pessoal da favela em que moro. Mas, uma hora, estarei mentindo para os outros e para mim mesma. Cada vez mais, a cidade me parece o lugar em que gostarei de passar o resto da minha vida. As ruas são mais largas, há gente por todos os lados e sempre vejo coisas novas. Tenho medo de parecer metida, mas fico ansiosa pelo domingo. Colocarei a roupa de que mais gosto e irei para o centro. Assistirei missa e, depois, tomarei sorvete na praça. Os cinemas, o Passeio Público, a Rua do Ouvidor, é a glória tudo isso!
Para todo mundo da favela, passo muito tempo no centro para fazer safadeza, para encontrar lugar para ficar longe de todo mundo e dos meus pais. No fundo, eu não me esqueço de onde vim, não tenho nojo. É por isso que me magoo quando me dizem essas coisas. Parece que estão me expulsando de uma vez e eu não queria que fosse assim.
         Estou perdendo as amigas da infância, pois quase todas já estão casadas. Eu sei que também deveria casar logo. Quero ter família, filhos e alguém com quem me sinta bem. Mas é coisa séria e não posso errar. Abri mão de muita coisa para estudar para viver em um lugar melhor. Todo mundo aqui também quer isso. Mas não adianta esperar que os outros nos deem coisas boas, pois vivemos em um buraco. Eles pensam que aqui só tem o que não presta.
         Eu preciso fazer alguma coisa para continuar a conquistar o que eu quero. Mas estou sozinha. Sei que uma hora vai acontecer. E apareceu o João. Não aguento. Ele é bonito, gentil e sinto que tem algo por mim que não é só interesse de homem. Mas também estou com medo. Seu eu me abrir demais, ele vai ser mais forte e perderei o controle da minha vida. Como vai ser depois? Ficam olhando para gente aqui na Estação do Lucas e dando risada.
         Não queria desconfiar nem um pouco dele, lá no fundo. Mas o João muda a conversa do nada, fica olhando em volta e começa a ser safado. Fico confusa, pois parece outra pessoal. Ele me pede  coisas absurdas, fora de hora! Eu não posso me entregar assim! Quem ele pensa que sou?! Por que não continua a ser tão doce. Poderia ficar muito mal falada, mas ficaria com o João se as coisas não forem como eu quero. Mas e se ele não quiser ficar comigo se conseguir fazer essa loucura antes? Ele tem um bom emprego e mostra interesse quando falo que quero fazer concurso público. Mas isso não é suficiente, eu acho.

         Não tenho coragem para falar essas coisas para ninguém. Meus pais não vão gostar do jeito do João, e minhas amigas vão me deixar. Ele está impaciente e estou enlouquecendo. Tem esse doutor que dá conselhos para mulheres nesse jornalzinho. Não aguento. Serei direta porque quero uma resposta urgente." 

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Monólogo

"(...) os atores cuidam que a plateia não compreende sem que eles aumentem a carga e por isso se desmancham em gesticulação" (Aristóteles)



Dentro da filosofia do ETA, é erro grotesco a interpretação forçada - a exagerada, nem se fala... Já temos monólogo para a aula deste domingo e quero conhecer um pouco minha voz e cuidar dela. O objetivo é soar o mais realista possível. Nem tenho que atuar em grupo, a cena é minha.

domingo, 14 de setembro de 2014

Marcas

Você vê a beleza de dia, de noite e em seus sonhos. Mas te amaremos para sempre?  Eu te amarei para sempre? Você nos verá toda a sua vida. Ela pode ser longa e não encontrarmos outra maneira de te ver.

sábado, 13 de setembro de 2014

Alma

Ele cobriu os meus olhos com sua mão quando me viu de costas. Eu sabia que era alguém que eu amava. Eu o amo. Ele leu o meu diário e não pude fazer nada. Esse é nosso segredo, meu amor.

História do amor no Ocidente

"Precisamos de um mito para exprimir o fato obscuro e inconfessável de que a paixão está ligada à morte e leva à destruição qualquer que se entregue completamente a ela. Isso porque desejamos salvar a paixão e adoramos essa infelicidade, ao passo que as morais oficiais e a nossa razão as condenam" (Denis de Rougemont)


Eis um dos pontos altos de minha criatividade! "História do amor no Ocidente". Um livro perigoso para quem se apaixona, para quem é imaginativo ou para quem é os dois. O objeto do amor é o próprio sentimento e não uma pessoa. É uma das obras que valeram boa parte da minha formação. Tenho quase trinta páginas de anotações e não usei nada na faculdade. Porém, é um livro para o sentimento, para a poesia e, ao final de contas, para a vida. 
A proposta de Denis de Rougemont é bem interessante para quem estudou Trovadorismo na adolescência. Por baixo daquele sofrimento dedicado à dama inacessível há ideias de uma seita cristã, os cátaros, cujo grupo chegou a ser chamado de "Igreja de amor".  A seita foi completamente exterminada no século XIII pela Cruzada Albigense.
O que Rougemont quer provar é que a paixão, principalmente a paixão platônica (já "resolvida" na Era da Psicologia), é um sentimento "construído" por crenças religiosas. Para os cátaros, a vida do corpo era um princípio do Mal. Uma das maneiras de combatê-lo é uma visão sobre o amor na qual o homem, através de um ritual de vassalagem, submissão, jura dedicar seu sentimento à dama que lhe concede esse favor. Porém o amor desenvolvido em seu estado considerado puro, sem a interferência da realização sexual. Havia mesmo o desejo de adiantar a morte para continuar o gozo desse sentimento no espaço privilegiado do céu, em que não há mais o corpo humano:

"De todos os males, o meu difere; ele me agrada; regozijo-me com ele; meu mal é o que desejo e minha dor é meu bem-estar. Não vejo, portanto, de que me queixar, pois meu mal advém de minha vontade; é meu querer que se torna meu mal; tenho tanto gosto em querer assim que sofro prazerosamente, e há tanta alegria na minha dor que me delicio com a minha doença" (Chrétien de Troyes, século XII).

Os participantes desse culto não eram necessariamente marido e mulher. Dessa forma, uma das possíveis consequências da adesão ao catarismo era a condenação do casamento, uma vez que o fiel não poderia se unir sexualmente a ninguém. O casal herético poderia constituir elemento de um real triângulo amoroso. Com o fim de ressaltar esse caráter clandestino do amor cortês, quero fazer uma adaptação da citação que Rougemont faz de um trovador francês:


"Deus, é a Aurora! Como Ela vem depressa" Como gostaria, meu Deus, que a Noite não findasse, que meu amigo pudesse permanecer junto a mim, e que a Sentinela jamais anunciasse o romper da Aurora! Deus! É a Aurora. Como Ela vem depressa!"

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A demanda do Santo Graal

Há mais de dez anos, num semestre de literatura portuguesa na faculdade, minha professora disse que viveu uma fase de sensibilidade cristão por causa da leitura de uma versão portuguesa da Demanda do Santo Graal. O detalhe é que ela não era religiosa. Se isso aconteceu com ela, a professora ficava imaginando a força do livro na Idade Média.
A obra original foi escrita na França e Inglaterra e publicada em versos no século XII. No século seguinte, foi adaptada para a prosa e percorreu outras línguas européias. O manuscrito mais antigo em português data do século XV e foi uma tradução do francês. Porém, há especulações sobre indícios no texto que denunciam que foi escrito no século XIII.
Fernão Lopes, um prosador português, escreve no século XV e entendo com boa facilidade um texto seu que tenho à minha frente:

"Em três cousas, assinadamente, achamos, pela mor parte, que el-Rei D. Pedro de Portugal gastava seu tempo. A saber: em fazer justiça e desembargos do Reino; em monte e caça, de que era mui querençoso; e em danças e festas segundo aquele tempo, em que tomava grande sabor, que adur é agora para ser crido. E estas danças eram a som de umas longas que então usavam, sem curando de outro instrumento, posto que o aí houvesse; e se alguma vez lho queriam tanger, logo se enfadava dele e dizia que o dessem ao demo, e que lhe chamassem os trombeiros"


Já em D. Dinis (viveu entre os séculos XIII e XIV), um dos maiores trovadores portugueses, escrevia numa língua de mais difícil compreensão:


En gran coita, senhor,
que peior que mort'é,
vivo, per boa fé,
e polo voss'amor
esta coita sofr'eu
por vós, senhor, que eu

Vi polo meu gran mal,
e melhor mi será
de morrer por vós já
e, pois meu Deus non val,
esta coita sofr'eu
por vós, senhor, que eu

Polo meu gran mal vi,
e mais mi val morrer
ca tal coita sofrer,
pois por meu mal assi
esta coita sofr'eu
por vós, senhor, que eu

Vi por gran mal de mi,
pois tan coitad'and'eu.

(Detalhe: perceba-se que o sofrimento dá-se mais pelo amor em si do que pelo objeto do amor. Sobre isso, ler "História do amor no ocidente". Nele propõe-se que mesmo o perfil bastante comum do amor que envolve grande sofrimento tenha origem numa seita herética cristã e que os trovadores expressavam ideias da mesma disfarçadas em seus versos)


Voltando à Demanda, o texto em prosa é de linguagem muito parecida com essa, bem longe da do século XV. É um monumento literário do português. O que me chamou a atenção foi o erotismo absurdo da relação entre Galaaz, belíssimo cavaleiro da Távola Redonda que, em suas andanças para encontrar o Graal, tornar-se objeto de desejo de uma princesa. Ela se apaixona ao ponto de esquecer o decoro da época e praticamente o coloca em sua cama. Porém, para concluir a Demanda, o cavaleiro tinha que manter sua honestidade e, no limite, sua castidade. Galaaz é justamente quem chega à relíquia. Ele não toca na princesa e essa se mata, ainda que o suicida era visto como condenado ao inferno. O curioso é que um texto com forte conteúdo de propaganda religiosa deixe passar histórias com um erotismo quase subterrâneo, inconsciente. Quer dizer, no afã de pintar o pecado, o autor poderia ter feito concessão a alguma expressão do desejo (até geral), como se fosse muito difícil reprimi-lo completamente. Uma expressão de erotismo que não perde sua atualidade nem um livro como "O erotismo", de Georges Bataille, ex-católico adolescente e, depois, escritor de romances de grande libertinagem. O erotismo dos apaixonados. Um trecho e um pdf da versão portuguesa da Demanda:

"Se nam for bem menfestado, ca em tam alto serviço de Deus como este nom deve entrar se nam for bem menfestado e  bem comungado e limpo e purgado de todolos cajões e de pecado mortal. Ca esta demanda nom é de taes obras, ante é demanda das puridades e das cousas ascondidas de Nosso Senhor"

http://www.4shared.com/web/preview/pdf/M0TqzfTu


terça-feira, 9 de setembro de 2014

Novela de cavalaria

Ano que vem completam-se 500 anos do nascimento de Santa Teresa de Ávila, monja, mística, santa, doutora da igreja, cuja autobiografia, chamada “Livro da Vida”, é o segunda clássico mais lido na Espanha depois de Dom Quixote.
Quero fazer alguma representação baseada nessa figura. Conheço o Livro da Vida e tenho a tradução de 2014 da Obra Completa.  Em meus projetos de leitura, passarei dos romances russos para textos do Siglo de Oro da literatura espanhola. Penso em Teresa de Ávila, Dom Quixote e em um romance de cavalaria.  A santa alimentou sua imaginação não só com a leitura de obras religiosas, mas também com as de novelas de cavalaria.
Uma das novelas de cavalaria mais famosas entre o público luso-espanhol foi “Amadis de Gaula”. As histórias que compõem esse livro tiveram sua primeira edição definitiva em 1508, em Zaragoza. É famosa a disputa pela autoria entre portugueses e espanhóis. Porém, o primeiro texto de que se dispõe é o em língua espanhola.  Está disponível na net o livro integral: http://www.biblioteca-antologica.org/wp-content/uploads/2009/09/RODRIGUEZ-de-MONTALVO-Amad%C3%ADs-de-Gaula.pdf
São mais de 900 páginas e 133 capítulos! Pela reação de uma leitora – que adorou a novela -, tive a impressão de que são centenas de personagens! Li algumas linhas e me sinto seguro para continuar quando tiver disponibilidade.  Um trecho inicial:


“Considerando los sabios antiguos que los grandes hechos de las armas en escrito dejaron, cuán breve fue aquello que en escrito de verdade en ellos pasó, así como las batallas de nuestro tiempo que por nos fueron vistas nos dieron clara experiencia y noticia, quiseron sobre algún cimiento de verdade componer tales y tan extrañas hazañas con que no solamente pensaron dejar em perpetua memoria a los que aficionados fueron, mas aquéllos por quien leídas fuesen em grande admiración, como por las antiguas historias de los griegos y troyanos y otros que batallaron, parece, por escrito.”

domingo, 7 de setembro de 2014

Estúdio de Treinamento Artístico - ETA




Comecei hoje o módulo 1 do curso de teatro do Estúdio de Treinamento Artístico (ETA).  Eu suspeitava que haveria uma espécie de eliminação de estudantes logo na primeira aula. O professor, mesmo em tom amigável, descreveu quais as possibilidades de carreira para um ator. Enquanto profissão, uma das mais ingratas possíveis. Aí, julgo eu, em termos da cidade de São Paulo.
Em não poucos momentos, ele, ainda em tom amigável, perguntava se alguém queria desistir. Todos se mantiveram em sala, depois dessa explanação e, depois, começaram os exercícios. Para quem está com um joelho em fisioterapia, até que eu corri e tive tração na sola dos sapatos na movimentação que todos fazíamos no palco.
         Primeiramente, houve um reconhecimento do espaço. Caminhávamos por todos os lados, todos ao mesmo tempo. Depois, fomos orientados a fixar o olhar nos rostos das pessoas com quem cruzávamos nessa movimentação.  A correria ficou por conta da simulação de entrada em metrô ou trem em horário de pico. Imitamos o que entendíamos serem palhaço.
Por último, e o exercício mais complicado para mim, nos abraçávamos em duplas ou trios. Após algum tempo, havia troca. Tinha corpos com almas dentro e eu não me toquei em interagir com o que eu poderia pensar sobre meus companheiros. Transformo emoções oriundas de situações inusitadas em objeto para reflexão estética e criação artística. Eu me transformo em dois: o que sente e o que analisa o que sente. Mas lá estavam corpos e almas disponíveis, assim como meu corpo e alma. Ainda bem que há muito o que pensar de todos os elementos trabalhados em aula e esse, dos abraços, não passará desapercebido.
         Recebemos uma pequena apostila com orientações gerais visando à formação de uma visão de carreira por parte do aluno que está iniciando.  Tudo o que fizermos em aula deverá ser repetido em casa. E já temos pesquisa teórica para o próximo domingo sobre as origens do teatro, cinema e televisão. O professor quer material escrito que comprove que houve pesquisa e leitura. Agora mesmo verificarei bibliografia viável de ser lida até a aula e onde posso encontrá-la.
Na terceira ou quarta aula serão formados os grupos já se pensando na montagem do espetáculo que encerrará o módulo. Desde minha matrícula, há quase dois meses, organizei as informações sobre o curso e minha própria capacidade enquanto projeto de ator. Após isso, defini como objetivo principal a captação de vinte pessoas, a vinte reais o ingresso, para assistirem ao espetáculo do meu grupo em duas apresentações. Se não conseguir reunir essas pessoas, tenho que custear. Dependendo do conflito que o aluno tenha disposição de levar à frente para não pagar, pode ser levado a juízo, acumulando razoável soma de dinheiro a ressarcir à escola.
Mas o ETA, em linhas gerais, pensa bem mais em formar  pessoas que ganhem a vida levando o teatro como coisa séria do que em formar “cobradores de impostos”.  Lógico que tem que trazer o público. Mas, por outro lado, são ossos do ofício, é um aspecto do processo entre outros. É parte do show.

Uma razoável autocrítica pode fazer com que não se acredite no próprio espetáculo e a falta desse brilho nos olhos pode ser algo a desanimar as pessoas em comprar os ingressos. Você quer fazer o melhor e saberá que estará vendendo um bom produto. Estou usando um vocabulário que sugere um esvaziamento do aspecto artístico do teatro. Porém, para quem pensa em carreira, deve-se aliar o desejo de oferecer – e se oferecer – o melhor com vistas a quem queira ver o melhor.  O teatro, no ocidente, tem mais de dois mil anos, e o público faz parte dessa história. Em suma, a arte dramática tem valor. A questão é quem reconheça isso ou não. 

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Lamentação

“Pereceu o esplendor de Israel nas tuas alturas!
 Como caíram os heróis?

Não o publiqueis em Gat,
não o anunciareis nas ruas de Ascalon,
que não se alegrem as filhas dos filisteus,
que não exultem as filhas dos incircuncisos!

Montanhas de Gelboé,
nem orvalho nem chuva se derramem sobre vós,
Campos férteis,
pois foi maculado o escudo dos heróis!

O escudo de Saul não foi ungido com óleo,
mas com o sangue dos feridos,
com a gordura dos guerreiros;
o arco de Jônatas jamais hesitou,
Nem a espada de Saul voltou inútil.

Saul e Jônatas, amados e encantadores,
na vida e na morte não se separaram.
Mais do que as águias eram velozes,
mais do que os leões eram fortes.

Filhas de Israel, chorai sobre Saul,
que vos vestiu de escarlate e de adornos,
que adornou com ouro
os vossos vestidos.

Como caíram os heróis
no meio do combate?
Jônatas, ferido de morte sobre tuas alturas.
que sofrimento tenho por ti, meu irmão Jônatas.

Tu tinhas para mim tanto encanto,
a tua amizade me era mais cara
do que o amor das mulheres.
Como caíram os heróis
E pereceram as armas de guerra?” 

(II Samuel: capítulo 1, versículos 19-27, versão mais atual da Bíblia de Jerusalém)







A lamentação era um tipo de composição poética utilizado nos exercícios de tiro ao arco no contexto da formação da teocracia guerreira de Israel no Oriente Médio bíblico. O texto transcrito acima é atribuído ao então fugitivo do rei Saul, Davi, o monarca que consolidaria o estado. Apesar de a relação entre o rei e esse militar, poeta e cortesão ter tido altos e baixos, nunca Davi quis se vingar nele nos tempos em que o rei procurava mata-lo por medo de perder o trono.
Quanta a Jônatas, era filho de Saul e a expressão da amizade entre ele e Davi pode ser tomada como um primor literário. O escritor leva ao limite a intensidade de uma amizade ao ponto de a mesma superar o relacionamento íntimo com mulheres; ao ponto de a leitura superar os limites até de nossa época ao sugerir um sentimento homoerótico.
O primeiro estado de Israel foi consolidado em duzentos anos de guerra, concluídos no reinado de Davi. O rei Saul, em decadência, travava uma batalha contra os velhos adversários filisteus, na qual Israel foi derrotado. Saul se matou para manter o orgulho de não ser morto por um povo que ele desprezava ,e seu filho Jônatas também morreu.

Literariamente, a maior parte da Bíblia é um texto fraco, redigido sem nenhum interesse artístico aparentemente. No entanto um livro como Cantares é um dos grandes poemas eróticos da cultura ocidental. Sem contar livros sapienciais dramáticos como Jó e pessimistas como Eclesiastes.
Fora esses livros, pode levar uma centena de páginas para que se identifique qualidade literária. Porém, surgem trechos que se tornam atuais.
Também ficamos desolados quando perdemos nossos heróis, representados naqueles cuja influência positiva em nossas vidas constitui nossas melhores lembranças. Estou falando em artistas, intelectuais, esportistas, etc.
         Quando se fala em cidades dominadas pelos filisteus como Gat, Ascalon e Gelboé, para um leitor, não necessariamente religioso, e com razoável repertório de literatura clássica a menção a esses lugares, por si só, pode não ter importância. No entanto, é um espaço relacionado àqueles heróis bíblicos. Também aos heróis de todos os tempos; aos nossos heróis.

         A grandeza desses homens é realçada ao se deter na dignidade na queda de quem fora à luta para ganhar. O pranto é o culto devido a eles e a alegria do inimigo não tem razão de ser, pois mente a respeito da lembrança que queremos ter de nossos heróis, dos nossos modelos.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Admiração

O dia está acabando. Por favor, compartilhe comigo seus sentimentos reais. Estão nos seus olhos, que brilham. É só por mim. Posso nunca amar aqueles que realmente são bons; me tornar melhor. Só aqueles que estão por aí, como eu. 
Quem é bom age de coração? Se machuca? Quero saber até quando você pode me abraçar. Eu acredito em você.  

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Amanhã?

Você não vive nesse tempo e não encontra espaço para o seu corpo e nem para o seu espírito. Mas ainda não quer desligar tudo. E quem pode ligar? Para sempre? Você pode nem descobrir se essas são as perguntas certas. O fracasso é mais garantido do que a esperança. 

Esquecer

Neste momento penso em sua morte. É claro que estou triste. Mas você mostrou um lado seu que tive a sorte de perceber e entender. Você realmente era uma pessoa boa. Eu gostava de saber que havia alguém comigo que não se importava em dividir a própria alma para ajudar os outros. E gostava, também, da sensação de não ter uma admiração ilusória por você. Nem o amor me impediu de ver que você transformava as pessoas a quem eu desprezava. Eu deixei de ter vergonha do meu orgulho, pois você não se importava comigo quando ajudava o mendigo que passava. Fazia isso sem o menor sinal de presunção. Era como se pedir licença para alguém dar passagem.
Até um cachorro entende que sofro. Se disser que o mundo ficou pior porque você foi embora também não vai importar. É algo além do meu egoísmo; não terei a exata medida do que fez, pois não fui a pessoa necessitada.

         Como amizades e relacionamentos de conveniência, há chance de eu esquecer muito do que estou dizendo. Mesmo sabendo que te amava, talvez eu acabe me tornando uma pessoa melhor se lembrar que você não era escrava da sua solidão. 

Leitura de duas ou mais obras ao mesmo tempo

Simplesmente não consigo ler apenas um livro. Todos os dias leio ao menos dois. A leitura seguida me cansa, minha concentração diminui e acaba soando como perda de tempo para mim .
No entanto, já exagerei e cheguei a ler cinco ao mesmo tempo. Como estava em uma fase de muita curiosidade intelectual, a ansiedade em cumprir um plano rigoroso para levar a cabo ambições desse tipo não chegava a me prejudicar. Já li em fórum de internet relato de quem lia até sete livros de uma vez.
Com o tempo, várias ocupações tiram boa parte do tempo e, aí, sim, precisei diminuir o ritmo. À medida que concluía a leitura de uma obra, não a substituía. O fim era diminuir a quantidade de livros e, hoje, está bastante satisfatório uma leitura obrigatória, a bíblia, e outra dentro de um projeto maior que inclui várias outras obras. Atualmente, me dedico a romances russos. Estou em Anna Kariênina, de Tolstói, e já adquiri Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski. O último será "Crime e Castigo", desse mesmo autor.
Um dos apelos de ler dois ou mais livros é o de tal hábito ser escolha do leitor. Em um curso de letras, isso poderia ser compulsório por ocasião de se estar matriculado, ao mesmo tempo, em duas disciplinas de literatura.

Quando concluir o ciclo de romances russos, penso em ler obras do Século de Ouro espanhol (XV-XVII). Tal projeto é para valorizar a leitura de livros de Santa Teresa de Ávila, personalidade na qual pretendo basear um monólogo previsto para o terceiro semestre do meu curso de teatro. Se Livro da Vida é um clássico da literatura universal, Castelo Interior ou As Moradas é considerada a melhor obra da monja carmelita. Nessa lista de livros consta um dos maiores livros já publicados, Dom Quixote e, de preferência, quero ler um romance de cavalaria escrito em espanhol e com tradução em português. Mas está difícil encontrar algum por ora. 

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Entrelaço

Ontem assisti ao meu primeiro espetáculo de dança. Um amigo me convidou para ver um trabalho chamado “Entreatos” e pude melhorar um pouco minha percepção da ideia de artes cênicas. No começo, os dançarinos tinham posições definidas no palco e falavam. Muito parecido com teatro propriamente dito. Após, houve quase uma hora de dança, com sete pessoas no palco. Tais falas eu vi como uma espécie de temas musicais, os quais serão desenvolvidos na apresentação – aí, suponho, seja em que linguagem for. Artes cênicas, enfim, como algo mais amplo que o teatro.
Quanto ao elemento de linguagem artística como definidor da dança, ele também se destacava por conta de a música estar sempre presente, como uma poesia interpretada pelos dançarinos. Admito que não me impressionou como a fruição de outras obras de arte com que tenho mais familiaridade. Admito, ainda, que essa relativa indiferença se deva, suponho que em grande medida, a um gosto não educado para a dança. No entanto, eu não preciso me penalizar tanto, logo de início, pois Drummond gostava dos Trapalhões e João Cabral não gostava de música. 
Creio que há uma esperança, de imediato, para "entender" o espetáculo. Meu parâmetro de comparação é um vídeo de uma apresentação de butô, da qual gosto muitíssimo. O cotejo dos dois espetáculos pode apurar algo em mim a respeito da visão sobre a arte da dança. 

Tecnicamente, não há muito o que acrescentar. Artistas com preparo físico para executarem movimentos muito largos e apoiarem o corpo uns dos outros no alto.

domingo, 31 de agosto de 2014

Sonata ao Luar

São Paulo, 31 de agosto de 2014.

Voltei a minha antiga rotina de ouvir música erudita. Escolhi a sonata para piano no 14, de Beethoven, popularmente conhecida  como “sonata ao luar” , na interpretação de Daniel  Barenboim. A música foi composta por volta de 1801 e publicada em 1802 em Viena.
         Minha audição foi prejudicada pela sonolência, a qual comprometeu minha atenção em boa parte da música. A perda só não foi maior, pois já ouvi muito essa obra.
         O primeiro movimento é altamente sugestivo para aqueles que gostam de músicas mais melancólicas. No entanto, essa impressão não foi completa em mim por causa da maior lentidão a que Barenboim submeteu um movimento já devagar. No momento em que eu esperava determinada nota, a música continuava suspensa na anterior.
         De resto, a maneira como Barenboim tocou os outros dois movimentos não me foi estranha. O segundo, mais singelo, um pouco festivo, como a sugerir a entrada da primavera. O terceiro, muito veloz, impetuoso, melódico, uma verdadeira celebração.
Supondo que Barenboim teve bom senso na sua interpretação no primeiro movimento, meu repertório sobre uma só música sai enriquecido. Pretendo ouvi-la melhor daqui a alguns dias, pois, até lá, creio que minha concentração para ouvir música  clássica estará um pouco melhor.

sábado, 30 de agosto de 2014

Beethoven

"São Paulo, 18 de abril de 2005. 


Alterei minha rotina de audição de Beethoven na ECA esta semana devido à reunião com o professor Valdir amanhã. Em vez de terça e quinta, como de costume, virei à ECA segunda e quarta-feira.
Uma primeira audição da sonata n. 13 foi o suficiente para eu gostar desta música. Como outras composições que ouvi de Beethoven, os elementos desta sonata encontram-se dispersos, difusos, em vez de se oferecerem facilmente à minha apreciação. O primeiro movimento é o mais sutil dos três. Não sei dizer se gostei de sua melodia ou cadência, pois estes elementos não estão muito marcados nesta parte da música. No entanto, fico bastante curioso em ouvi-lo novamente só por causa desta atmosfera sugestiva. 
O segundo movimento é o mais belo dos três. Uma melodia que me cativou e embalou atravessando o movimento. Mas esta melodia também é mais sugestiva do que marcante.

O terceiro movimento é bastante impetuoso e um pouco alegre. É a parte da sonata de que menos gostei. Mas novamente a atmosfera sugestiva criada pela combinação de impetuosidade e do tom um pouco alegre também me deixam intrigado."




É com grande prazer que compartilho parte de minha rotina privilegiada como estudante da USP entre 2004 e 2005. Morava no campus, tinha dedicação exclusiva - o que irritava um professor burguês que eu tive -, atividade espantosa se comparada à de hoje e cuidado com minha formação cultural. Mesmo extremamente ocupado com as disciplinas de dois cursos, da pesquisa de iniciação científica e dos estágios em escolas, eu lia ao menos um romance em língua estrangeira e ouvia música clássica duas vezes por semana. Eu me eduquei para ouvir música instrumental de uma hora, como é o caso da Nona Sinfonia. Um outro universo.
Nos anos de 2004 e 2005 me organizei da maneira mais inalterável possível. Eu não digo que perdi em relação à minha vida social e sentimental. Nesse período, as sementes da minha identidade como pessoa foram bem semeadas e as pessoas com que me reunia nas horas vagas agregavam a essa minha vivência. Nos anos seguintes, apenas coloquei em prática esses valores com mais intensidade.O ambiente era muito amado por mim e extraí dele o que pude para me descobrir. Isso não é tão simples para quem se vê como mais liberal em ambientes nos quais isso é desvalorizado e até punido.
Depois dessa época, o que não experimentei foi justamente essa estabilidade em praticamente todos os setores da minha vida. Por um lado é bom, pois é boa a sensação de se falar com propriedade quando alguém quer certo tipo de conselho – fui “sobrevivente” em alguns eventos. Por outro, alguns projetos tornaram-se quase impraticáveis. Escolhi a carreira acadêmica em 2001. Mas, terminando o doutorado há alguns meses, num prazo de 14 anos ininterruptos como aluno da USP, tive tempo para refletir e não vi felicidade nessa carreira por ora. Saí muito desgastado, tomei decisões erradas e até agora estou respirando o ar puro que foi ter superado coisas que nem ouso escrever aqui. Já não faz sentido ler livro, preparar e aplicar aula, orientar aluno e publicar artigo nesse momento. Eu reflito sobre isso e não tenho a menor disposição. Pelo que conheço da minha relação com a academia, trabalharia muito. Porém, não me sentiria feliz. Há várias coisas que a faculdade não pode me dar e que quero experimentar nessa altura da vida. Por exemplo: estou em um momento em que quero ler literatura, não ensinar literatura. Os livros são grossos, leio mais de  um por vez, além de outras atividades cujo âmbito comentarei agora. 
No exato momento em que reflito, não posso esquecer que, novamente, escolhi a felicidade em relação a uma carreira a seguir. Daqui a uma semana inicio meu curso de teatro e já carrego algumas ideias, informações, leitura, etc . Em comum com o que já passou, é algo pelo qual eu “não soltaria o osso”. Há dez anos que tenho envolvimento com interpretação. Tudo de uma maneira irregular, mas, com o tempo, o sentimento que se desenvolveu foi o que um dos meus destinos possíveis seria a rotina de ator, de performer, etc. Há os ossos do ofício, e eles ainda me soam como herança do que tenho vivido. Mas, já aos 37 anos, é bem razoável dar um gás a mais naquilo que ainda não é ganha-pão em vez de não ter planos de felicidade objetivos para o futuro por conta de esperar “subir de vida” em rotinas profissionais para as quais nem tenho perfil e nas quais me vejo perdido, e aí, sim, escolher a felicidade. Os astros nem sempre estão de acordo.

Leituras

                  Creio que no próximo mês concluirei a leitura de “Anna Kariênina, de Liev Tolstói. Após essa obra, vem “Irmãos Karamázov”, de Dostoiévski. Esses livros fazem parte de meu projeto de ler romances clássicos da literatura russa. Logo após “Karamázov”, leio “Crime e Castigo” e encerro.
Espero que esses meses me familiarizem com parte de uma cultura que produziu, em mais ou menos um século, poderosa impressão na Europa. Chega a ser inacreditável como, a partir da adesão da aristocracia russa ao iluminismo francês, eles devolveram para a Europa, em tão pouco tempo, um punhado de mestres: Chekhov, Turgueniev, Pushkin , Tolstói, Dostoiévski, Lérmontov , Gogol, etc.
No extenso romance histórico “Guerra e Paz”, Tolstói intercala, com as guerras da Rússia contra a França de Napoleão, a rotina intelectual, doméstica, cultural, religiosa e popular russa.
         A respeito de “Guerra”, eu me perguntava, enquanto obtinha informações básicas a respeito da operação de Napoleão, o que seu exército ficou fazendo, durante um mês, em uma Moscou que já não significava ponto estratégico na invasão. É patético, enquanto ele alimentava fantasias de grandeza, o fato de não virem ao seu encontro representantes de altas esferas militares – e creio que da aristocracia também – demonstrar sujeição ao seu gênio. O exército concentrou suas forças em outros pontos, não foi derrotado em Moscou. Uma das consequências de os franceses não terem aproveitado uma vitória que o inimigo parecia aceitar foi o afrouxamento da disciplina dos soldados que se juntaram à população no saque do que tinha sobrado da cidade. Após algum tempo, o exército francês se viu em tal situação que os soldados estavam torcendo para serem capturados como prisioneiros.
         Quanto à vida na corte, parecia impraticável a um membro da aristocracia não frequentar os bailes de sua classe social. Os militares ocupavam lugares de honra nesses eventos. O próprio rei, Pedro I, se ressentia de não ser um militar, e Napoleão se aproveitava disso para ironizar o rival.
                  Creio que não se avança em interpretar uma enorme quantidade de palavras do livro no sentido de criticar a vida de máscaras da corte. Os bailes eram uma necessidade. Dali eram desenvolvidos círculos de amigos por afinidades ou interesses, os jovens se conheciam, famílias eram constituídas, a cultura era apresentada e discutida, além de uma política de emergência, dado o constante estado de guerra que a Rússia se mantinha há décadas; enfim, estou falando de uma ocasião central para a manutenção de uma classe social num tempo um pouco distante da perda dos privilégios na Revolução de 1909.
Uma parte da inspiração do livro foi o conhecimento que Tolstói a respeito de um bilhete de um suicídio consumado. Cito o comentário de Rubens Figueiredo, tradutor da obra:
“Um vizinho de Tolstói e seu parceiro de caçadas, chamado Bíbikov, vivia com uma mulher de nome Anna, que se tornara sua amante. Aos poucos, ela a abandonou em troca da preceptora alemã de seus filhos, com quem tinha, até, intenção de casar-se. Em desespero, Anna recolheu alguns pertences, vagou pelo campo durante três dias, por fim, jogou-se debaixo de um trem. Antes, redigiu um bilhete para Bíbikov. ‘Você é o meu assassino. Seja feliz, se um assassino puder ser feliz. Pode ver o meu cadáver, nos trilhos da estação de Iássenki, se quiser’.

         Tolstói foi à estação, no dia seguinte, e presenciou a autópsia”

         Situação, condição humana, dramática, que se presta maravilhosamente ao discurso da Era da Psicologia, no julgamento de que a esposa foi fraca ao ponto de não assumir a responsabilidade por sua morte.  
Nos romances que li, eu não sei até onde Machado de Assis pode ter se desenvolvido na arte da ironia e da constituição da psicologia de complexas personagens quando penso em Kariênina. No fundo, não acredito – ou não entenda muito de - em crítica literária, e nem fiz doutorado a respeito de nosso escritor. Mas, apesar da perfeição e sutilezas da linguagem desenvolvida no que considero sua obra-prima, “Esaú e Jacó”; e, apesar do que julgo ser o seu melhor capítulo, o sonho acordado de Flora em ‘A grande noite’, “Anna Kariênina” é muito maior.

         Falei em me familiarizar com uma cultura, acima; no caso, a russa do século XIX. Mas posso ser honesto. Adaptando uma declaração constante em um curso de latim do odiado por muitos, Napoleão Mendes de Almeida, o que importa não é o que se faz com determinadas coisas, mas o que elas fazem conosco. É gratificante eu pensar isso. Um personagem pode ser maior que um ser humano que eu vejo na rua, ou aquele que abre para mim sua intimidade em seus aspectos até ridículos. Ou, ainda, aquele que me ensina. Um autor pode construir uma personagem a partir do que ele é, do que observa ao redor, nas outras pessoas, pelas reflexões que faz a respeito de determinadas coisas, do que é possível ele ser, entre outras possibilidades. Isso pode causar, no leitor, uma espécie de ilusão de experiência, de vivência; a literatura pode proporcionar experiência interior, fazer com que eu sinta a mim mesmo, que pense a respeito de mim, por exemplo, sobre coisas que só intuía; pode fazer com que eu tenha a forte ilusão de que posso ser mais ainda do que sou, não importa se para o bem ou para o mal.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Diário

Há dez anos que escrevo diários. Porém, há até bem pouco tempo, escrevia esporadicamente. Mas havia intervalos de especial empenho. Quando morei no alojamento da USP, tirava dois dias da semana para ouvir música clássica - principalmente sinfonias e obras de piano de Beethoven. Após a audição, anotava as impressões que tinha sobre as obras.
Trabalhei como inspetor de alunos por alguns meses no ano passado. Depois que os alunos estavam dentro das salas, arrumava tempo para escrever. Eu não lembro qual o estímulo, mas escrevia muito. O caderno era para anotações relativas ao trabalho. Com o tempo, para não me comprometer, passei a arrancar as folhas.
Naquela versão de Drácula, com Keanu Reeves, lembro de uma cena em que ele, dentro do trem na viagem para a Transilvânia, tinha um espaço reservado que dispunha até de mesa para escrever. Eram cartas muito extensas para a noiva, e até muito técnicas nas passagens em que descrevia a paisagem e os nativos das regiões que observava.
Uma noite, no Madame Freak, vi um estande, o do Diários de Viagem, com diversos tipos de diários artesanais que mexiam com meu imaginário do século XIX. Na época não pude comprar, mas, pouco tempo depois, consegui com um intermediário. Minha proposta inicial era escrever sete páginas por dia, ritmo em que o volume seria preenchido em mais ou menos dois meses. Iniciava com os assuntos mais bobos, numa espécie de aquecimento para desenvolver coisas mais elaboradas que ainda viriam à mente.
Hoje não escrevo tanto, mas já tenho o hábito e é isso o que me importa agora.
Eu nunca procurei resolver a minha vida escrevendo, porém, o diário foi uma oportunidade de eu escolher uma carreira profissional que tivesse o poder de eu vê-la mais do que um ganha-pão. Apesar de ter formação acadêmica para pleitear dar aulas em qualquer faculdade do país, creio que não é o momento. Foram catorze anos de esforços quase ininterruptos e a ideia de continuar, nesse momento, não me traz alegria alguma. Deveria ter parado depois do mestrado. Fiz o doutorado logo em seguida e o desgaste foi imprevisível ao ponto de a conclusão do curso ter sido uma grande vitória pessoal.
 Já o teatro é algo que me dá tesão há dez anos, mas que nunca pude desenvolver com regularidade. Por falta de iniciativa e de oportunidade, chego a ficar um ano sem apresentar nada. Excetuando, nos últimos meses, o trabalho que desenvolvi com a companhia Ballet des Ombres. Mas, basicamente, faço performances femininas.

Até onde me informei, ator é como qualquer profissão. No início, pode ser necessário ocupar-se em outra atividade paralela para pagar as contas. Mas, até agora, estou disposto a isso. É também uma espécie de desafio, de teste, para saber a que ponto poderia ter ido, no passado, caso pudesse ter me envolvido mais com essa atividade.

A miséria dos outros

- Quando eu olho para essas pessoas, sinto que não vivi a vida.
  - Não, você tem mais histórias do que um livro.
  - Eu não consigo pensar direito; eu não tenho paz de espírito.
 -Talvez não seja o momento. Podemos morrer logo, mas, se passamos por isso, ninguém irá te impedir de pensar no que aconteceu contigo. Só você viveu isso e mais ninguém.
  - Mas eu não gostaria de passar por tantas mudanças em tão pouco tempo. Eu já cheguei a pensar que não conseguiria, mas não entendo pra que isso serve quando eu prevejo obstáculos. Olho para essas pessoas e não vejo nenhum sinal de mudança. Se parecem demais. Eu já fui assim.
 - Elas podem não ser autênticas ou serem simplesmente reservadas. Um suicida pode enganar. Mas, no final, é só você quem fica nessa história toda. Não tem como escapar da solidão.
  - História... Tenho esse momento aqui com você, mas ainda sofro. O mundo continua complicado. E eu também.
  - Fala-se por aí em se colocar no lugar dos outros. Mas isso é possível? Ou apenas calha de acontecer com algumas pessoas? Não consigo fazer isso, mas você mesmo se revela para mim.

  - Você é meu amigo; sinto paz.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O decadentista Huysmans



Ele foi o mais enérgico dos homens... Grande criador de repugnâncias, preparado para o pior e só sedento do excessivo, cruel a um ponto incrível, acolhedor de todos os horrores que se podem imaginar nos humanos, ansioso por bizarrias e por contos que se contariam para um porteiro do inferno; e, de outra parte, com as mãos puras... Emanavam dele os reflexos de uma erudição dedicada ao estranho... Pressentia imundícies, malefícios, ignomínias em todas as coisas deste mundo; e talvez tivesse razão... Quando ele se meteu com a mística, uniu às delícias, ao seu minucioso e complacente conhecimento das obscenidades visíveis e indecências ponderáveis, uma curiosidade atenta, inventiva e inquieta pela obscenidade sobrenatural e pelas imundícies suprassensíveis... Suas estranhas narinas, palpitando, sentiam o que há de nauseabundo no mundo. O repugnante cheiro das tabernas, o acre incenso falsificado, os odores insípidos ou fétidos dos bordéis e dos asilos noturnos, tudo o que mexia com seus sentidos excitava seu gênio… Pode-se dizer que o repugnante e o horrível em todos os gêneros induziam-no a observá-los, e que as abominações de toda espécie tinham por efeito engendrar um artista especialmente feito para pintá-las, dentro de um homem criado especialmente para sofrê-las...

(Descrição de Paul Valéry)


terça-feira, 26 de agosto de 2014

O vazio do coração

Encostas em uma parede e olhas para trás. Olhai para o passado. Destroi o segredo mais querido do grande amor da sua vida; e todas as lembranças dos seus irmãos de alma. O mundo se tornará mais penoso, durará só um dia e não verás o por do sol. Temes a morte à noite?

Um castelo sublime


Esse texto é uma adaptação do artigo do byroniano Pires de Almeida a respeito de Tibúrcio Antônio Craveiro, autor da primeira tradução de Byron no Brasil (1832); no caso, o poema “Lara”.


         “Dificilmente poder-se-á compreender temperamento mais sombrio que o de Tibúrcio Antônio Craveiro. Erudito e observador, levava suas investigações até ao extremo. Chegava mesmo, pelas originalidades que o caracterizavam, a resvalar no facinoroso, na crueldade fria e horripilante.
         Quem o encarasse, mal que não quisesse, tremeria, julgando achar-se ante o ídolo Moloque, a que tantas inocentes crianças foram sacrificadas.
         Passava habitualmente os dias na contemplação do horror. E que estranho gabinete de trabalho o nevrótico preparara para se isolar dos amigos, para afugentar os inoportunos. Sarapintada de rutilante sangue, essa peça tinha, nos ângulos, múmias egípcias, peruanas, mexicanas, amazônicas, - que sei eu!?  – nas quais a morte parecia a eternização de uma dor, a galvanização de uma tortura! Derramadas, aqui e ali, cabeças decepadas, decalques e símiles de outras, que ele assegurava existentes em vários museus da Europa. Essas caraças, cujos lábios, enrugando-se, se haviam contraído, punham a nu alvos dentes de marfim, que lhes emprestavam expressões sardônicas variadas; e os olhos, vítreos, embaciados como os do afogado, fitos no além, no infinito, pareciam protestar contra a perene agonia a que os haviam condenado.
         Suspensas pelos cabelos, ou fincadas na parede, distinguiam-se cabeças de índios, riscadas de fresco a fim de ressaltar-lhes a hediondez, aumentando, destarte, o pavoroso daquele soturno aposento, que o próprio hematófilo denominara “A caverna do sangue!”.
         A todos estes cruentos adornos intercalavam-se estampas patibulosas, o Inferno de Dante, por exemplo, os suplícios da Inquisição, batalhas sanguinolentas, cenas de massacres, emolduradas de negro e pendentes de pregos prateados.
          A modesta biblioteca estava de perfeito acordo com a fúnebre galeria de seu aposento, pois catalogava unicamente obras cujos assuntos eram enforcamentos, terremotos, desastres, grandes epidemias, pestes negras, cemitérios e hospitais de sangue, causas célebres, magia negra, cabalística, documentos sobre malefícios, escrituras em pele humana, pactos com o diabo, fórmulas de esquecidos filtros, obtenção e efeitos dos mais sutis venenos das clássicas pitonisas. E, para completar o infernal índice, a Suma Teológica de S. Tomás de Aquino, a Patologia, dos Teólogos, A Demonologia, do Papa Urbano; tudo, enfim, quanto a aberração dos místicos e dos frades produziu de mais pungente, de mais sobrenatural e doloroso.
         Tibúrcio Craveiro não descurara seus adereços de instalação, destinados a recordar os instrumentos mais refinadamente trucidantes dos subterrâneos do Santo Ofício: aqui, um cavalete para o suplício da gota d'água; ali, os atrozes borzeguins de couro, o tronco e respectivo malho; mais adiante, um cepo e um machado, tintos de sangue, em tudo semelhantes aos que serviram para a decapitação de Maria Stuart. Num aparador, ao breve alcance da mão, afiada guilhotina microscópica, de que se utilizava o tradutor do Lara para cortar a ponta aos charutos. À escrivaninha, caveiras envernizadas, aos pés de um alentado crucifixo, pintado de preto, aos lados do qual fumavam constantemente dois veladores. Nesse crucifixo, o Redentor, horripilante em sua nudez, com o corpo zebrado pela fustigação, coberto de equimoses, o sangue a escorrer-lhe pelos estirados e amarelentos membros, trazia à memória as toscas imagens das sacristias de pequenas vilas. De um dos flancos, esguichos de sangue alagavam-lhe o ventre e a toalha; os cabelos, tinha-os ele grudados às espáduas pelo viscoso suor do repasse; e os artelhos, tetanicamente contraídos pela extrema agonia.
         O fantástico byroniano só escrevia à noite, e, isso mesmo, sobre uma lousa de mármore negro que trouxera da sepultura de uma donzela, filha de famigerado executor de alta justiça, carrasco de algumas dezenas de morte por crimes políticos, e a respeito da qual se fizera uma lenda tão danada quanto cruenta; e ele só poetava à luz sinistra de cinco velas entrecruzadas, pintadas de negro e encarnado, à semelhança dos círios de vinte libras, que o Tribunal da Inquisição mandava que empunhassem os sentenciados, após a missa, seguindo daí, já vestidos de S. Bento, para as fogueiras da fé.
         Sobre a funérea lousa, que lhe servia de mesa, viam-se frascos assim rotulados: Venenos!!!
         E os continham de todas as espécies, e para todos os efeitos: sutis, violentos, estupefacientes, narcóticos, vertiginosos, convulsionantes, isto é, que proporcionam a morte, mais ou menos lenta, mais ou menos rápida, conforme os casos. Nada faltava ali: desde a beladona, o estramônio, a mandrágora, o ópio - e todos seus derivados -, o arsênico, a estricinina, até o terrível veneno dos Bórgias e o afamado elixir de dupla vista, que fazia enxergar, através, os corpos mais densos e opacos; fórmulas estas que, pretendia ele, recebera de um velho cigano moribundo.
         Quando interpelado pelos que procuravam desviá-lo da sinistra mania, assegurava o assombrado Tibúrcio Craveiro que naquele vasilhame só havia finíssimos licores com que obsequiava os íntimos.
         Nas portadas, à maneira de cabide, destacavam-se fincadas lâminas, punhais e floretes, desde a navalha espanhola até o afiado canivete maltês; do cris javanês, às misericórdias dos duelistas do século XVI; das adagas e dos estiletes venezianos aos canjiares eslavos e árabes. Não havia, enfim, arma branca alguma, uma só máquina de silenciosa destruição, que o pretenso facínora não a tivesse ali à mão.
         Ai! Se não passasse o misterioso byroniano de um inofensivo colecionador de hemáticas esquisitices, seria isso excelente. Dizia-se, porém, à boca pequena, que Tibúrcio Craveiro, juntando a ação à palavra, uma noite, num sótão, dera passaporte, desta para melhor, a um inofensivo operário.
         Como? Quando? E onde? Acidente, incidente de sua atropelada mocidade. Não obstante, ele mesmo narrava a tétrica história, que buscava provar confessando haver propositalmente concorrido para um suicídio. Ouçamo-lo:


         'Morava eu na estreita e imunda Rua da Misericórdia, num sombrio sótão, dificilmente praticável por íngreme escada de mão.
         Ao penetrar-se ali, dir-se-ia fétida enxovia; não obstante, até que fosse por mim ocupada, a sinistra furna gozara de boa fama.
         Numa das dependências, a mais soturna, se domiciliara modesto operário, casado com interessante rapariga, que ele trazia fechada a sete chaves.
         Eu, porém, 'acrescentava o epiléptico', consegui avistá-la; e, desde esse dia, tracei imediato plano de destruição e ruína.
         Não podia, é claro, ser-lhe indiferente, mesmo porque não sou,‘rematara ele', uma vulgaridade qualquer.
         Mais tarde constou-me que, a princípio, a arisca prisioneira criara medo de mim, o que é de bom agouro nas aventuras arriscadas.
         Do medo passou para o terror, do terror resvalou na curiosidade. E quando a filáucia feminina se desperta, e aguça, necessário se lhe torna amplamente satisfazer.
         Foi o que sucedeu.
         Eu então, ‘prosseguia o desequilibrado byroniano’, obedecendo aos meus instintos sanguinários, cogitei, ferino, em isolá-la do resto do mundo. Não porque a amasse, mas por motivo de ódio implacável à humanidade.
         O marido, porém, era-me estorvo, e cumpria liquidá-lo.               
         Procurei insinuar-me na intimidade desse feliz casal, o que custosamente consegui.
         Eu bem poderia ter-me socorrido de qualquer meio fácil, do magnetismo, por exemplo, para coagir aquele desgraçado operário ao jugo da minha vontade. Mas tudo isso seria um trabalho sem dificuldade e, o que é pior ainda, excessivamente rápido. Preferi chegar a resultados não menos expeditos em seus processos, porém calculadamente frios e perversos em seus atinados efeitos.
         Pensei, então, no modo de impelir o infeliz ao suicídio, e isso foi, para mim, questão de poucas canseiras.
         Comecei incutindo-lhe no espírito ideias de grandeza; depois, o delírio de riquezas, desenvolvendo-se em breve, no pobre diabo, a mania da perseguição...
         Com esse intuito, criei-lhe inimigos por toda parte, rivais nos afetos da consorte, concorrentes ao seu lugar nas oficinas, vizinhos que o tocaiavam, beleguins de polícia que o espionavam, criaturas imaginárias que o escoltavam.
         Como aquele cerebelo, por mim assim empolgado, resistiria a tão fixas maquinações?!...
         O que devia seguir, seguiu-se.
         O rude operário enlouqueceu. Seu espírito sempre assombrado, sempre inquieto e alerta, descobria a cada passo inimigos ocultos, até ali não existentes, impossíveis, inimagináveis.
         Se o torcia uma cólica, - ai! - atribuía logo ao planejado envenenamento. Não comia, não bebia, nem mesmo água fresca.
         Renunciava o próprio sono, com medo que seus perseguidores, aproveitando-se desses momentos de passivo repouso, penetrassem, favorecidos pela escuridão da noite, no seu aposento, e pusessem em prática seus malévolos intentos.
         A moléstia, acentuando-se, despediram-no da fábrica.
         Sobreveio, então, a miséria, e, com ela, as vicissitudes, os desgostos, o abandono de si mesmo; e, daí, as continuadas rixas com a companheira, os pugilatos, recrudescências da mania, um louco furioso, enfim.
         Assediado por tantos males, atormentado pelas figuras imaginárias que eu pusera em ação, e por tantas outras reais que, a seu turno, a vítima reconhecia - justa ou injustamente, que importa! - para escapar aos seus algozes, refugiou-se na morte e atirou-se pela janela do quarto que ocupava, em segundo andar'”.