Esse
texto é uma adaptação do artigo do byroniano Pires de Almeida a respeito de
Tibúrcio Antônio Craveiro, autor da primeira tradução de Byron no Brasil
(1832); no caso, o poema “Lara”.
“Dificilmente
poder-se-á compreender temperamento mais sombrio que o de Tibúrcio Antônio
Craveiro. Erudito e observador, levava suas investigações até ao extremo.
Chegava mesmo, pelas originalidades que o caracterizavam, a resvalar no
facinoroso, na crueldade fria e horripilante.
Quem
o encarasse, mal que não quisesse, tremeria, julgando achar-se ante o ídolo
Moloque, a que tantas inocentes crianças foram sacrificadas.
Passava
habitualmente os dias na contemplação do horror. E que estranho gabinete de
trabalho o nevrótico preparara para se isolar dos amigos, para afugentar os
inoportunos. Sarapintada de rutilante sangue, essa peça tinha, nos ângulos,
múmias egípcias, peruanas, mexicanas, amazônicas, - que sei eu!? – nas quais a morte parecia a eternização de
uma dor, a galvanização de uma tortura! Derramadas, aqui e ali, cabeças
decepadas, decalques e símiles de outras, que ele assegurava existentes em
vários museus da Europa. Essas caraças, cujos lábios, enrugando-se, se haviam
contraído, punham a nu alvos dentes de marfim, que lhes emprestavam expressões
sardônicas variadas; e os olhos, vítreos, embaciados como os do afogado, fitos
no além, no infinito, pareciam protestar contra a perene agonia a que os haviam
condenado.
Suspensas
pelos cabelos, ou fincadas na parede, distinguiam-se cabeças de índios, riscadas
de fresco a fim de ressaltar-lhes a hediondez, aumentando, destarte, o pavoroso
daquele soturno aposento, que o próprio hematófilo denominara “A caverna do
sangue!”.
A
todos estes cruentos adornos intercalavam-se estampas patibulosas, o Inferno
de Dante, por exemplo, os suplícios da Inquisição, batalhas sanguinolentas,
cenas de massacres, emolduradas de negro e pendentes de pregos prateados.
A modesta biblioteca estava de perfeito acordo
com a fúnebre galeria de seu aposento, pois catalogava unicamente obras cujos
assuntos eram enforcamentos, terremotos, desastres, grandes epidemias, pestes
negras, cemitérios e hospitais de sangue, causas célebres, magia negra,
cabalística, documentos sobre malefícios, escrituras em pele humana, pactos com
o diabo, fórmulas de esquecidos filtros, obtenção e efeitos dos mais sutis
venenos das clássicas pitonisas. E, para completar o infernal índice, a Suma
Teológica de S. Tomás de Aquino, a Patologia, dos Teólogos, A Demonologia,
do Papa Urbano; tudo, enfim, quanto a aberração dos místicos e dos frades
produziu de mais pungente, de mais sobrenatural e doloroso.
Tibúrcio
Craveiro não descurara seus adereços de instalação, destinados a recordar os
instrumentos mais refinadamente trucidantes dos subterrâneos do Santo Ofício:
aqui, um cavalete para o suplício da gota d'água; ali, os atrozes borzeguins de
couro, o tronco e respectivo malho; mais adiante, um cepo e um machado, tintos
de sangue, em tudo semelhantes aos que serviram para a decapitação de Maria
Stuart. Num aparador, ao breve alcance da mão, afiada guilhotina microscópica,
de que se utilizava o tradutor do Lara para cortar a ponta aos charutos.
À escrivaninha, caveiras envernizadas, aos pés de um alentado crucifixo,
pintado de preto, aos lados do qual fumavam constantemente dois veladores.
Nesse crucifixo, o Redentor, horripilante em sua nudez, com o corpo zebrado
pela fustigação, coberto de equimoses, o sangue a escorrer-lhe pelos estirados
e amarelentos membros, trazia à memória as toscas imagens das sacristias de
pequenas vilas. De um dos flancos, esguichos de sangue alagavam-lhe o ventre e
a toalha; os cabelos, tinha-os ele grudados às espáduas pelo viscoso suor do
repasse; e os artelhos, tetanicamente contraídos pela extrema agonia.
O
fantástico byroniano só escrevia à noite, e, isso mesmo, sobre uma lousa de
mármore negro que trouxera da sepultura de uma donzela, filha de famigerado
executor de alta justiça, carrasco de algumas dezenas de morte por crimes
políticos, e a respeito da qual se fizera uma lenda tão danada quanto cruenta;
e ele só poetava à luz sinistra de cinco velas entrecruzadas, pintadas de negro
e encarnado, à semelhança dos círios de vinte libras, que o Tribunal da
Inquisição mandava que empunhassem os sentenciados, após a missa, seguindo daí,
já vestidos de S. Bento, para as fogueiras da fé.
Sobre
a funérea lousa, que lhe servia de mesa, viam-se frascos assim rotulados:
Venenos!!!
E
os continham de todas as espécies, e para todos os efeitos: sutis, violentos,
estupefacientes, narcóticos, vertiginosos, convulsionantes, isto é, que
proporcionam a morte, mais ou menos lenta, mais ou menos rápida, conforme os
casos. Nada faltava ali: desde a beladona, o estramônio, a mandrágora, o ópio -
e todos seus derivados -, o arsênico, a estricinina, até o terrível veneno dos
Bórgias e o afamado elixir de dupla vista, que fazia enxergar, através, os
corpos mais densos e opacos; fórmulas estas que, pretendia ele, recebera de um
velho cigano moribundo.
Quando
interpelado pelos que procuravam desviá-lo da sinistra mania, assegurava o
assombrado Tibúrcio Craveiro que naquele vasilhame só havia finíssimos licores
com que obsequiava os íntimos.
Nas
portadas, à maneira de cabide, destacavam-se fincadas lâminas, punhais e
floretes, desde a navalha espanhola até o afiado canivete maltês; do cris
javanês, às misericórdias dos duelistas do século XVI; das adagas e dos
estiletes venezianos aos canjiares eslavos e árabes. Não havia, enfim, arma
branca alguma, uma só máquina de silenciosa destruição, que o pretenso facínora
não a tivesse ali à mão.
Ai!
Se não passasse o misterioso byroniano de um inofensivo colecionador de
hemáticas esquisitices, seria isso excelente. Dizia-se, porém, à boca pequena,
que Tibúrcio Craveiro, juntando a ação à palavra, uma noite, num sótão, dera
passaporte, desta para melhor, a um inofensivo operário.
Como?
Quando? E onde? Acidente, incidente de sua atropelada mocidade. Não obstante,
ele mesmo narrava a tétrica história, que buscava provar confessando haver
propositalmente concorrido para um suicídio. Ouçamo-lo:
'Morava
eu na estreita e imunda Rua da Misericórdia, num sombrio sótão, dificilmente
praticável por íngreme escada de mão.
Ao
penetrar-se ali, dir-se-ia fétida enxovia; não obstante, até que fosse por mim
ocupada, a sinistra furna gozara de boa fama.
Numa
das dependências, a mais soturna, se domiciliara modesto operário, casado com
interessante rapariga, que ele trazia fechada a sete chaves.
Eu,
porém, 'acrescentava o epiléptico', consegui avistá-la; e, desde esse dia,
tracei imediato plano de destruição e ruína.
Não
podia, é claro, ser-lhe indiferente, mesmo porque não sou,‘rematara ele', uma
vulgaridade qualquer.
Mais
tarde constou-me que, a princípio, a arisca prisioneira criara medo de mim, o
que é de bom agouro nas aventuras arriscadas.
Do
medo passou para o terror, do terror resvalou na curiosidade. E quando a
filáucia feminina se desperta, e aguça, necessário se lhe torna amplamente
satisfazer.
Foi
o que sucedeu.
Eu
então, ‘prosseguia o desequilibrado byroniano’, obedecendo aos meus instintos
sanguinários, cogitei, ferino, em isolá-la do resto do mundo. Não porque a
amasse, mas por motivo de ódio implacável à humanidade.
O
marido, porém, era-me estorvo, e cumpria liquidá-lo.
Procurei
insinuar-me na intimidade desse feliz casal, o que custosamente consegui.
Eu
bem poderia ter-me socorrido de qualquer meio fácil, do magnetismo, por
exemplo, para coagir aquele desgraçado operário ao jugo da minha vontade. Mas
tudo isso seria um trabalho sem dificuldade e, o que é pior ainda, excessivamente
rápido. Preferi chegar a resultados não menos expeditos em seus processos,
porém calculadamente frios e perversos em seus atinados efeitos.
Pensei,
então, no modo de impelir o infeliz ao suicídio, e isso foi, para mim, questão
de poucas canseiras.
Comecei
incutindo-lhe no espírito ideias de grandeza; depois, o delírio de riquezas,
desenvolvendo-se em breve, no pobre diabo, a mania da perseguição...
Com
esse intuito, criei-lhe inimigos por toda parte, rivais nos afetos da consorte,
concorrentes ao seu lugar nas oficinas, vizinhos que o tocaiavam, beleguins de
polícia que o espionavam, criaturas imaginárias que o escoltavam.
Como
aquele cerebelo, por mim assim empolgado, resistiria a tão fixas
maquinações?!...
O
que devia seguir, seguiu-se.
O
rude operário enlouqueceu. Seu espírito sempre assombrado, sempre inquieto e
alerta, descobria a cada passo inimigos ocultos, até ali não existentes,
impossíveis, inimagináveis.
Se
o torcia uma cólica, - ai! - atribuía logo ao planejado envenenamento. Não
comia, não bebia, nem mesmo água fresca.
Renunciava
o próprio sono, com medo que seus perseguidores, aproveitando-se desses
momentos de passivo repouso, penetrassem, favorecidos pela escuridão da noite,
no seu aposento, e pusessem em prática seus malévolos intentos.
A
moléstia, acentuando-se, despediram-no da fábrica.
Sobreveio,
então, a miséria, e, com ela, as vicissitudes, os desgostos, o abandono de si
mesmo; e, daí, as continuadas rixas com a companheira, os pugilatos,
recrudescências da mania, um louco furioso, enfim.
Assediado
por tantos males, atormentado pelas figuras imaginárias que eu pusera em ação,
e por tantas outras reais que, a seu turno, a vítima reconhecia - justa ou
injustamente, que importa! - para escapar aos seus algozes, refugiou-se na
morte e atirou-se pela janela do quarto que ocupava, em segundo andar'”.
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