sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A demanda do Santo Graal

Há mais de dez anos, num semestre de literatura portuguesa na faculdade, minha professora disse que viveu uma fase de sensibilidade cristão por causa da leitura de uma versão portuguesa da Demanda do Santo Graal. O detalhe é que ela não era religiosa. Se isso aconteceu com ela, a professora ficava imaginando a força do livro na Idade Média.
A obra original foi escrita na França e Inglaterra e publicada em versos no século XII. No século seguinte, foi adaptada para a prosa e percorreu outras línguas européias. O manuscrito mais antigo em português data do século XV e foi uma tradução do francês. Porém, há especulações sobre indícios no texto que denunciam que foi escrito no século XIII.
Fernão Lopes, um prosador português, escreve no século XV e entendo com boa facilidade um texto seu que tenho à minha frente:

"Em três cousas, assinadamente, achamos, pela mor parte, que el-Rei D. Pedro de Portugal gastava seu tempo. A saber: em fazer justiça e desembargos do Reino; em monte e caça, de que era mui querençoso; e em danças e festas segundo aquele tempo, em que tomava grande sabor, que adur é agora para ser crido. E estas danças eram a som de umas longas que então usavam, sem curando de outro instrumento, posto que o aí houvesse; e se alguma vez lho queriam tanger, logo se enfadava dele e dizia que o dessem ao demo, e que lhe chamassem os trombeiros"


Já em D. Dinis (viveu entre os séculos XIII e XIV), um dos maiores trovadores portugueses, escrevia numa língua de mais difícil compreensão:


En gran coita, senhor,
que peior que mort'é,
vivo, per boa fé,
e polo voss'amor
esta coita sofr'eu
por vós, senhor, que eu

Vi polo meu gran mal,
e melhor mi será
de morrer por vós já
e, pois meu Deus non val,
esta coita sofr'eu
por vós, senhor, que eu

Polo meu gran mal vi,
e mais mi val morrer
ca tal coita sofrer,
pois por meu mal assi
esta coita sofr'eu
por vós, senhor, que eu

Vi por gran mal de mi,
pois tan coitad'and'eu.

(Detalhe: perceba-se que o sofrimento dá-se mais pelo amor em si do que pelo objeto do amor. Sobre isso, ler "História do amor no ocidente". Nele propõe-se que mesmo o perfil bastante comum do amor que envolve grande sofrimento tenha origem numa seita herética cristã e que os trovadores expressavam ideias da mesma disfarçadas em seus versos)


Voltando à Demanda, o texto em prosa é de linguagem muito parecida com essa, bem longe da do século XV. É um monumento literário do português. O que me chamou a atenção foi o erotismo absurdo da relação entre Galaaz, belíssimo cavaleiro da Távola Redonda que, em suas andanças para encontrar o Graal, tornar-se objeto de desejo de uma princesa. Ela se apaixona ao ponto de esquecer o decoro da época e praticamente o coloca em sua cama. Porém, para concluir a Demanda, o cavaleiro tinha que manter sua honestidade e, no limite, sua castidade. Galaaz é justamente quem chega à relíquia. Ele não toca na princesa e essa se mata, ainda que o suicida era visto como condenado ao inferno. O curioso é que um texto com forte conteúdo de propaganda religiosa deixe passar histórias com um erotismo quase subterrâneo, inconsciente. Quer dizer, no afã de pintar o pecado, o autor poderia ter feito concessão a alguma expressão do desejo (até geral), como se fosse muito difícil reprimi-lo completamente. Uma expressão de erotismo que não perde sua atualidade nem um livro como "O erotismo", de Georges Bataille, ex-católico adolescente e, depois, escritor de romances de grande libertinagem. O erotismo dos apaixonados. Um trecho e um pdf da versão portuguesa da Demanda:

"Se nam for bem menfestado, ca em tam alto serviço de Deus como este nom deve entrar se nam for bem menfestado e  bem comungado e limpo e purgado de todolos cajões e de pecado mortal. Ca esta demanda nom é de taes obras, ante é demanda das puridades e das cousas ascondidas de Nosso Senhor"

http://www.4shared.com/web/preview/pdf/M0TqzfTu


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