domingo, 31 de agosto de 2014

Sonata ao Luar

São Paulo, 31 de agosto de 2014.

Voltei a minha antiga rotina de ouvir música erudita. Escolhi a sonata para piano no 14, de Beethoven, popularmente conhecida  como “sonata ao luar” , na interpretação de Daniel  Barenboim. A música foi composta por volta de 1801 e publicada em 1802 em Viena.
         Minha audição foi prejudicada pela sonolência, a qual comprometeu minha atenção em boa parte da música. A perda só não foi maior, pois já ouvi muito essa obra.
         O primeiro movimento é altamente sugestivo para aqueles que gostam de músicas mais melancólicas. No entanto, essa impressão não foi completa em mim por causa da maior lentidão a que Barenboim submeteu um movimento já devagar. No momento em que eu esperava determinada nota, a música continuava suspensa na anterior.
         De resto, a maneira como Barenboim tocou os outros dois movimentos não me foi estranha. O segundo, mais singelo, um pouco festivo, como a sugerir a entrada da primavera. O terceiro, muito veloz, impetuoso, melódico, uma verdadeira celebração.
Supondo que Barenboim teve bom senso na sua interpretação no primeiro movimento, meu repertório sobre uma só música sai enriquecido. Pretendo ouvi-la melhor daqui a alguns dias, pois, até lá, creio que minha concentração para ouvir música  clássica estará um pouco melhor.

sábado, 30 de agosto de 2014

Beethoven

"São Paulo, 18 de abril de 2005. 


Alterei minha rotina de audição de Beethoven na ECA esta semana devido à reunião com o professor Valdir amanhã. Em vez de terça e quinta, como de costume, virei à ECA segunda e quarta-feira.
Uma primeira audição da sonata n. 13 foi o suficiente para eu gostar desta música. Como outras composições que ouvi de Beethoven, os elementos desta sonata encontram-se dispersos, difusos, em vez de se oferecerem facilmente à minha apreciação. O primeiro movimento é o mais sutil dos três. Não sei dizer se gostei de sua melodia ou cadência, pois estes elementos não estão muito marcados nesta parte da música. No entanto, fico bastante curioso em ouvi-lo novamente só por causa desta atmosfera sugestiva. 
O segundo movimento é o mais belo dos três. Uma melodia que me cativou e embalou atravessando o movimento. Mas esta melodia também é mais sugestiva do que marcante.

O terceiro movimento é bastante impetuoso e um pouco alegre. É a parte da sonata de que menos gostei. Mas novamente a atmosfera sugestiva criada pela combinação de impetuosidade e do tom um pouco alegre também me deixam intrigado."




É com grande prazer que compartilho parte de minha rotina privilegiada como estudante da USP entre 2004 e 2005. Morava no campus, tinha dedicação exclusiva - o que irritava um professor burguês que eu tive -, atividade espantosa se comparada à de hoje e cuidado com minha formação cultural. Mesmo extremamente ocupado com as disciplinas de dois cursos, da pesquisa de iniciação científica e dos estágios em escolas, eu lia ao menos um romance em língua estrangeira e ouvia música clássica duas vezes por semana. Eu me eduquei para ouvir música instrumental de uma hora, como é o caso da Nona Sinfonia. Um outro universo.
Nos anos de 2004 e 2005 me organizei da maneira mais inalterável possível. Eu não digo que perdi em relação à minha vida social e sentimental. Nesse período, as sementes da minha identidade como pessoa foram bem semeadas e as pessoas com que me reunia nas horas vagas agregavam a essa minha vivência. Nos anos seguintes, apenas coloquei em prática esses valores com mais intensidade.O ambiente era muito amado por mim e extraí dele o que pude para me descobrir. Isso não é tão simples para quem se vê como mais liberal em ambientes nos quais isso é desvalorizado e até punido.
Depois dessa época, o que não experimentei foi justamente essa estabilidade em praticamente todos os setores da minha vida. Por um lado é bom, pois é boa a sensação de se falar com propriedade quando alguém quer certo tipo de conselho – fui “sobrevivente” em alguns eventos. Por outro, alguns projetos tornaram-se quase impraticáveis. Escolhi a carreira acadêmica em 2001. Mas, terminando o doutorado há alguns meses, num prazo de 14 anos ininterruptos como aluno da USP, tive tempo para refletir e não vi felicidade nessa carreira por ora. Saí muito desgastado, tomei decisões erradas e até agora estou respirando o ar puro que foi ter superado coisas que nem ouso escrever aqui. Já não faz sentido ler livro, preparar e aplicar aula, orientar aluno e publicar artigo nesse momento. Eu reflito sobre isso e não tenho a menor disposição. Pelo que conheço da minha relação com a academia, trabalharia muito. Porém, não me sentiria feliz. Há várias coisas que a faculdade não pode me dar e que quero experimentar nessa altura da vida. Por exemplo: estou em um momento em que quero ler literatura, não ensinar literatura. Os livros são grossos, leio mais de  um por vez, além de outras atividades cujo âmbito comentarei agora. 
No exato momento em que reflito, não posso esquecer que, novamente, escolhi a felicidade em relação a uma carreira a seguir. Daqui a uma semana inicio meu curso de teatro e já carrego algumas ideias, informações, leitura, etc . Em comum com o que já passou, é algo pelo qual eu “não soltaria o osso”. Há dez anos que tenho envolvimento com interpretação. Tudo de uma maneira irregular, mas, com o tempo, o sentimento que se desenvolveu foi o que um dos meus destinos possíveis seria a rotina de ator, de performer, etc. Há os ossos do ofício, e eles ainda me soam como herança do que tenho vivido. Mas, já aos 37 anos, é bem razoável dar um gás a mais naquilo que ainda não é ganha-pão em vez de não ter planos de felicidade objetivos para o futuro por conta de esperar “subir de vida” em rotinas profissionais para as quais nem tenho perfil e nas quais me vejo perdido, e aí, sim, escolher a felicidade. Os astros nem sempre estão de acordo.

Leituras

                  Creio que no próximo mês concluirei a leitura de “Anna Kariênina, de Liev Tolstói. Após essa obra, vem “Irmãos Karamázov”, de Dostoiévski. Esses livros fazem parte de meu projeto de ler romances clássicos da literatura russa. Logo após “Karamázov”, leio “Crime e Castigo” e encerro.
Espero que esses meses me familiarizem com parte de uma cultura que produziu, em mais ou menos um século, poderosa impressão na Europa. Chega a ser inacreditável como, a partir da adesão da aristocracia russa ao iluminismo francês, eles devolveram para a Europa, em tão pouco tempo, um punhado de mestres: Chekhov, Turgueniev, Pushkin , Tolstói, Dostoiévski, Lérmontov , Gogol, etc.
No extenso romance histórico “Guerra e Paz”, Tolstói intercala, com as guerras da Rússia contra a França de Napoleão, a rotina intelectual, doméstica, cultural, religiosa e popular russa.
         A respeito de “Guerra”, eu me perguntava, enquanto obtinha informações básicas a respeito da operação de Napoleão, o que seu exército ficou fazendo, durante um mês, em uma Moscou que já não significava ponto estratégico na invasão. É patético, enquanto ele alimentava fantasias de grandeza, o fato de não virem ao seu encontro representantes de altas esferas militares – e creio que da aristocracia também – demonstrar sujeição ao seu gênio. O exército concentrou suas forças em outros pontos, não foi derrotado em Moscou. Uma das consequências de os franceses não terem aproveitado uma vitória que o inimigo parecia aceitar foi o afrouxamento da disciplina dos soldados que se juntaram à população no saque do que tinha sobrado da cidade. Após algum tempo, o exército francês se viu em tal situação que os soldados estavam torcendo para serem capturados como prisioneiros.
         Quanto à vida na corte, parecia impraticável a um membro da aristocracia não frequentar os bailes de sua classe social. Os militares ocupavam lugares de honra nesses eventos. O próprio rei, Pedro I, se ressentia de não ser um militar, e Napoleão se aproveitava disso para ironizar o rival.
                  Creio que não se avança em interpretar uma enorme quantidade de palavras do livro no sentido de criticar a vida de máscaras da corte. Os bailes eram uma necessidade. Dali eram desenvolvidos círculos de amigos por afinidades ou interesses, os jovens se conheciam, famílias eram constituídas, a cultura era apresentada e discutida, além de uma política de emergência, dado o constante estado de guerra que a Rússia se mantinha há décadas; enfim, estou falando de uma ocasião central para a manutenção de uma classe social num tempo um pouco distante da perda dos privilégios na Revolução de 1909.
Uma parte da inspiração do livro foi o conhecimento que Tolstói a respeito de um bilhete de um suicídio consumado. Cito o comentário de Rubens Figueiredo, tradutor da obra:
“Um vizinho de Tolstói e seu parceiro de caçadas, chamado Bíbikov, vivia com uma mulher de nome Anna, que se tornara sua amante. Aos poucos, ela a abandonou em troca da preceptora alemã de seus filhos, com quem tinha, até, intenção de casar-se. Em desespero, Anna recolheu alguns pertences, vagou pelo campo durante três dias, por fim, jogou-se debaixo de um trem. Antes, redigiu um bilhete para Bíbikov. ‘Você é o meu assassino. Seja feliz, se um assassino puder ser feliz. Pode ver o meu cadáver, nos trilhos da estação de Iássenki, se quiser’.

         Tolstói foi à estação, no dia seguinte, e presenciou a autópsia”

         Situação, condição humana, dramática, que se presta maravilhosamente ao discurso da Era da Psicologia, no julgamento de que a esposa foi fraca ao ponto de não assumir a responsabilidade por sua morte.  
Nos romances que li, eu não sei até onde Machado de Assis pode ter se desenvolvido na arte da ironia e da constituição da psicologia de complexas personagens quando penso em Kariênina. No fundo, não acredito – ou não entenda muito de - em crítica literária, e nem fiz doutorado a respeito de nosso escritor. Mas, apesar da perfeição e sutilezas da linguagem desenvolvida no que considero sua obra-prima, “Esaú e Jacó”; e, apesar do que julgo ser o seu melhor capítulo, o sonho acordado de Flora em ‘A grande noite’, “Anna Kariênina” é muito maior.

         Falei em me familiarizar com uma cultura, acima; no caso, a russa do século XIX. Mas posso ser honesto. Adaptando uma declaração constante em um curso de latim do odiado por muitos, Napoleão Mendes de Almeida, o que importa não é o que se faz com determinadas coisas, mas o que elas fazem conosco. É gratificante eu pensar isso. Um personagem pode ser maior que um ser humano que eu vejo na rua, ou aquele que abre para mim sua intimidade em seus aspectos até ridículos. Ou, ainda, aquele que me ensina. Um autor pode construir uma personagem a partir do que ele é, do que observa ao redor, nas outras pessoas, pelas reflexões que faz a respeito de determinadas coisas, do que é possível ele ser, entre outras possibilidades. Isso pode causar, no leitor, uma espécie de ilusão de experiência, de vivência; a literatura pode proporcionar experiência interior, fazer com que eu sinta a mim mesmo, que pense a respeito de mim, por exemplo, sobre coisas que só intuía; pode fazer com que eu tenha a forte ilusão de que posso ser mais ainda do que sou, não importa se para o bem ou para o mal.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Diário

Há dez anos que escrevo diários. Porém, há até bem pouco tempo, escrevia esporadicamente. Mas havia intervalos de especial empenho. Quando morei no alojamento da USP, tirava dois dias da semana para ouvir música clássica - principalmente sinfonias e obras de piano de Beethoven. Após a audição, anotava as impressões que tinha sobre as obras.
Trabalhei como inspetor de alunos por alguns meses no ano passado. Depois que os alunos estavam dentro das salas, arrumava tempo para escrever. Eu não lembro qual o estímulo, mas escrevia muito. O caderno era para anotações relativas ao trabalho. Com o tempo, para não me comprometer, passei a arrancar as folhas.
Naquela versão de Drácula, com Keanu Reeves, lembro de uma cena em que ele, dentro do trem na viagem para a Transilvânia, tinha um espaço reservado que dispunha até de mesa para escrever. Eram cartas muito extensas para a noiva, e até muito técnicas nas passagens em que descrevia a paisagem e os nativos das regiões que observava.
Uma noite, no Madame Freak, vi um estande, o do Diários de Viagem, com diversos tipos de diários artesanais que mexiam com meu imaginário do século XIX. Na época não pude comprar, mas, pouco tempo depois, consegui com um intermediário. Minha proposta inicial era escrever sete páginas por dia, ritmo em que o volume seria preenchido em mais ou menos dois meses. Iniciava com os assuntos mais bobos, numa espécie de aquecimento para desenvolver coisas mais elaboradas que ainda viriam à mente.
Hoje não escrevo tanto, mas já tenho o hábito e é isso o que me importa agora.
Eu nunca procurei resolver a minha vida escrevendo, porém, o diário foi uma oportunidade de eu escolher uma carreira profissional que tivesse o poder de eu vê-la mais do que um ganha-pão. Apesar de ter formação acadêmica para pleitear dar aulas em qualquer faculdade do país, creio que não é o momento. Foram catorze anos de esforços quase ininterruptos e a ideia de continuar, nesse momento, não me traz alegria alguma. Deveria ter parado depois do mestrado. Fiz o doutorado logo em seguida e o desgaste foi imprevisível ao ponto de a conclusão do curso ter sido uma grande vitória pessoal.
 Já o teatro é algo que me dá tesão há dez anos, mas que nunca pude desenvolver com regularidade. Por falta de iniciativa e de oportunidade, chego a ficar um ano sem apresentar nada. Excetuando, nos últimos meses, o trabalho que desenvolvi com a companhia Ballet des Ombres. Mas, basicamente, faço performances femininas.

Até onde me informei, ator é como qualquer profissão. No início, pode ser necessário ocupar-se em outra atividade paralela para pagar as contas. Mas, até agora, estou disposto a isso. É também uma espécie de desafio, de teste, para saber a que ponto poderia ter ido, no passado, caso pudesse ter me envolvido mais com essa atividade.

A miséria dos outros

- Quando eu olho para essas pessoas, sinto que não vivi a vida.
  - Não, você tem mais histórias do que um livro.
  - Eu não consigo pensar direito; eu não tenho paz de espírito.
 -Talvez não seja o momento. Podemos morrer logo, mas, se passamos por isso, ninguém irá te impedir de pensar no que aconteceu contigo. Só você viveu isso e mais ninguém.
  - Mas eu não gostaria de passar por tantas mudanças em tão pouco tempo. Eu já cheguei a pensar que não conseguiria, mas não entendo pra que isso serve quando eu prevejo obstáculos. Olho para essas pessoas e não vejo nenhum sinal de mudança. Se parecem demais. Eu já fui assim.
 - Elas podem não ser autênticas ou serem simplesmente reservadas. Um suicida pode enganar. Mas, no final, é só você quem fica nessa história toda. Não tem como escapar da solidão.
  - História... Tenho esse momento aqui com você, mas ainda sofro. O mundo continua complicado. E eu também.
  - Fala-se por aí em se colocar no lugar dos outros. Mas isso é possível? Ou apenas calha de acontecer com algumas pessoas? Não consigo fazer isso, mas você mesmo se revela para mim.

  - Você é meu amigo; sinto paz.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O decadentista Huysmans



Ele foi o mais enérgico dos homens... Grande criador de repugnâncias, preparado para o pior e só sedento do excessivo, cruel a um ponto incrível, acolhedor de todos os horrores que se podem imaginar nos humanos, ansioso por bizarrias e por contos que se contariam para um porteiro do inferno; e, de outra parte, com as mãos puras... Emanavam dele os reflexos de uma erudição dedicada ao estranho... Pressentia imundícies, malefícios, ignomínias em todas as coisas deste mundo; e talvez tivesse razão... Quando ele se meteu com a mística, uniu às delícias, ao seu minucioso e complacente conhecimento das obscenidades visíveis e indecências ponderáveis, uma curiosidade atenta, inventiva e inquieta pela obscenidade sobrenatural e pelas imundícies suprassensíveis... Suas estranhas narinas, palpitando, sentiam o que há de nauseabundo no mundo. O repugnante cheiro das tabernas, o acre incenso falsificado, os odores insípidos ou fétidos dos bordéis e dos asilos noturnos, tudo o que mexia com seus sentidos excitava seu gênio… Pode-se dizer que o repugnante e o horrível em todos os gêneros induziam-no a observá-los, e que as abominações de toda espécie tinham por efeito engendrar um artista especialmente feito para pintá-las, dentro de um homem criado especialmente para sofrê-las...

(Descrição de Paul Valéry)


terça-feira, 26 de agosto de 2014

O vazio do coração

Encostas em uma parede e olhas para trás. Olhai para o passado. Destroi o segredo mais querido do grande amor da sua vida; e todas as lembranças dos seus irmãos de alma. O mundo se tornará mais penoso, durará só um dia e não verás o por do sol. Temes a morte à noite?

Um castelo sublime


Esse texto é uma adaptação do artigo do byroniano Pires de Almeida a respeito de Tibúrcio Antônio Craveiro, autor da primeira tradução de Byron no Brasil (1832); no caso, o poema “Lara”.


         “Dificilmente poder-se-á compreender temperamento mais sombrio que o de Tibúrcio Antônio Craveiro. Erudito e observador, levava suas investigações até ao extremo. Chegava mesmo, pelas originalidades que o caracterizavam, a resvalar no facinoroso, na crueldade fria e horripilante.
         Quem o encarasse, mal que não quisesse, tremeria, julgando achar-se ante o ídolo Moloque, a que tantas inocentes crianças foram sacrificadas.
         Passava habitualmente os dias na contemplação do horror. E que estranho gabinete de trabalho o nevrótico preparara para se isolar dos amigos, para afugentar os inoportunos. Sarapintada de rutilante sangue, essa peça tinha, nos ângulos, múmias egípcias, peruanas, mexicanas, amazônicas, - que sei eu!?  – nas quais a morte parecia a eternização de uma dor, a galvanização de uma tortura! Derramadas, aqui e ali, cabeças decepadas, decalques e símiles de outras, que ele assegurava existentes em vários museus da Europa. Essas caraças, cujos lábios, enrugando-se, se haviam contraído, punham a nu alvos dentes de marfim, que lhes emprestavam expressões sardônicas variadas; e os olhos, vítreos, embaciados como os do afogado, fitos no além, no infinito, pareciam protestar contra a perene agonia a que os haviam condenado.
         Suspensas pelos cabelos, ou fincadas na parede, distinguiam-se cabeças de índios, riscadas de fresco a fim de ressaltar-lhes a hediondez, aumentando, destarte, o pavoroso daquele soturno aposento, que o próprio hematófilo denominara “A caverna do sangue!”.
         A todos estes cruentos adornos intercalavam-se estampas patibulosas, o Inferno de Dante, por exemplo, os suplícios da Inquisição, batalhas sanguinolentas, cenas de massacres, emolduradas de negro e pendentes de pregos prateados.
          A modesta biblioteca estava de perfeito acordo com a fúnebre galeria de seu aposento, pois catalogava unicamente obras cujos assuntos eram enforcamentos, terremotos, desastres, grandes epidemias, pestes negras, cemitérios e hospitais de sangue, causas célebres, magia negra, cabalística, documentos sobre malefícios, escrituras em pele humana, pactos com o diabo, fórmulas de esquecidos filtros, obtenção e efeitos dos mais sutis venenos das clássicas pitonisas. E, para completar o infernal índice, a Suma Teológica de S. Tomás de Aquino, a Patologia, dos Teólogos, A Demonologia, do Papa Urbano; tudo, enfim, quanto a aberração dos místicos e dos frades produziu de mais pungente, de mais sobrenatural e doloroso.
         Tibúrcio Craveiro não descurara seus adereços de instalação, destinados a recordar os instrumentos mais refinadamente trucidantes dos subterrâneos do Santo Ofício: aqui, um cavalete para o suplício da gota d'água; ali, os atrozes borzeguins de couro, o tronco e respectivo malho; mais adiante, um cepo e um machado, tintos de sangue, em tudo semelhantes aos que serviram para a decapitação de Maria Stuart. Num aparador, ao breve alcance da mão, afiada guilhotina microscópica, de que se utilizava o tradutor do Lara para cortar a ponta aos charutos. À escrivaninha, caveiras envernizadas, aos pés de um alentado crucifixo, pintado de preto, aos lados do qual fumavam constantemente dois veladores. Nesse crucifixo, o Redentor, horripilante em sua nudez, com o corpo zebrado pela fustigação, coberto de equimoses, o sangue a escorrer-lhe pelos estirados e amarelentos membros, trazia à memória as toscas imagens das sacristias de pequenas vilas. De um dos flancos, esguichos de sangue alagavam-lhe o ventre e a toalha; os cabelos, tinha-os ele grudados às espáduas pelo viscoso suor do repasse; e os artelhos, tetanicamente contraídos pela extrema agonia.
         O fantástico byroniano só escrevia à noite, e, isso mesmo, sobre uma lousa de mármore negro que trouxera da sepultura de uma donzela, filha de famigerado executor de alta justiça, carrasco de algumas dezenas de morte por crimes políticos, e a respeito da qual se fizera uma lenda tão danada quanto cruenta; e ele só poetava à luz sinistra de cinco velas entrecruzadas, pintadas de negro e encarnado, à semelhança dos círios de vinte libras, que o Tribunal da Inquisição mandava que empunhassem os sentenciados, após a missa, seguindo daí, já vestidos de S. Bento, para as fogueiras da fé.
         Sobre a funérea lousa, que lhe servia de mesa, viam-se frascos assim rotulados: Venenos!!!
         E os continham de todas as espécies, e para todos os efeitos: sutis, violentos, estupefacientes, narcóticos, vertiginosos, convulsionantes, isto é, que proporcionam a morte, mais ou menos lenta, mais ou menos rápida, conforme os casos. Nada faltava ali: desde a beladona, o estramônio, a mandrágora, o ópio - e todos seus derivados -, o arsênico, a estricinina, até o terrível veneno dos Bórgias e o afamado elixir de dupla vista, que fazia enxergar, através, os corpos mais densos e opacos; fórmulas estas que, pretendia ele, recebera de um velho cigano moribundo.
         Quando interpelado pelos que procuravam desviá-lo da sinistra mania, assegurava o assombrado Tibúrcio Craveiro que naquele vasilhame só havia finíssimos licores com que obsequiava os íntimos.
         Nas portadas, à maneira de cabide, destacavam-se fincadas lâminas, punhais e floretes, desde a navalha espanhola até o afiado canivete maltês; do cris javanês, às misericórdias dos duelistas do século XVI; das adagas e dos estiletes venezianos aos canjiares eslavos e árabes. Não havia, enfim, arma branca alguma, uma só máquina de silenciosa destruição, que o pretenso facínora não a tivesse ali à mão.
         Ai! Se não passasse o misterioso byroniano de um inofensivo colecionador de hemáticas esquisitices, seria isso excelente. Dizia-se, porém, à boca pequena, que Tibúrcio Craveiro, juntando a ação à palavra, uma noite, num sótão, dera passaporte, desta para melhor, a um inofensivo operário.
         Como? Quando? E onde? Acidente, incidente de sua atropelada mocidade. Não obstante, ele mesmo narrava a tétrica história, que buscava provar confessando haver propositalmente concorrido para um suicídio. Ouçamo-lo:


         'Morava eu na estreita e imunda Rua da Misericórdia, num sombrio sótão, dificilmente praticável por íngreme escada de mão.
         Ao penetrar-se ali, dir-se-ia fétida enxovia; não obstante, até que fosse por mim ocupada, a sinistra furna gozara de boa fama.
         Numa das dependências, a mais soturna, se domiciliara modesto operário, casado com interessante rapariga, que ele trazia fechada a sete chaves.
         Eu, porém, 'acrescentava o epiléptico', consegui avistá-la; e, desde esse dia, tracei imediato plano de destruição e ruína.
         Não podia, é claro, ser-lhe indiferente, mesmo porque não sou,‘rematara ele', uma vulgaridade qualquer.
         Mais tarde constou-me que, a princípio, a arisca prisioneira criara medo de mim, o que é de bom agouro nas aventuras arriscadas.
         Do medo passou para o terror, do terror resvalou na curiosidade. E quando a filáucia feminina se desperta, e aguça, necessário se lhe torna amplamente satisfazer.
         Foi o que sucedeu.
         Eu então, ‘prosseguia o desequilibrado byroniano’, obedecendo aos meus instintos sanguinários, cogitei, ferino, em isolá-la do resto do mundo. Não porque a amasse, mas por motivo de ódio implacável à humanidade.
         O marido, porém, era-me estorvo, e cumpria liquidá-lo.               
         Procurei insinuar-me na intimidade desse feliz casal, o que custosamente consegui.
         Eu bem poderia ter-me socorrido de qualquer meio fácil, do magnetismo, por exemplo, para coagir aquele desgraçado operário ao jugo da minha vontade. Mas tudo isso seria um trabalho sem dificuldade e, o que é pior ainda, excessivamente rápido. Preferi chegar a resultados não menos expeditos em seus processos, porém calculadamente frios e perversos em seus atinados efeitos.
         Pensei, então, no modo de impelir o infeliz ao suicídio, e isso foi, para mim, questão de poucas canseiras.
         Comecei incutindo-lhe no espírito ideias de grandeza; depois, o delírio de riquezas, desenvolvendo-se em breve, no pobre diabo, a mania da perseguição...
         Com esse intuito, criei-lhe inimigos por toda parte, rivais nos afetos da consorte, concorrentes ao seu lugar nas oficinas, vizinhos que o tocaiavam, beleguins de polícia que o espionavam, criaturas imaginárias que o escoltavam.
         Como aquele cerebelo, por mim assim empolgado, resistiria a tão fixas maquinações?!...
         O que devia seguir, seguiu-se.
         O rude operário enlouqueceu. Seu espírito sempre assombrado, sempre inquieto e alerta, descobria a cada passo inimigos ocultos, até ali não existentes, impossíveis, inimagináveis.
         Se o torcia uma cólica, - ai! - atribuía logo ao planejado envenenamento. Não comia, não bebia, nem mesmo água fresca.
         Renunciava o próprio sono, com medo que seus perseguidores, aproveitando-se desses momentos de passivo repouso, penetrassem, favorecidos pela escuridão da noite, no seu aposento, e pusessem em prática seus malévolos intentos.
         A moléstia, acentuando-se, despediram-no da fábrica.
         Sobreveio, então, a miséria, e, com ela, as vicissitudes, os desgostos, o abandono de si mesmo; e, daí, as continuadas rixas com a companheira, os pugilatos, recrudescências da mania, um louco furioso, enfim.
         Assediado por tantos males, atormentado pelas figuras imaginárias que eu pusera em ação, e por tantas outras reais que, a seu turno, a vítima reconhecia - justa ou injustamente, que importa! - para escapar aos seus algozes, refugiou-se na morte e atirou-se pela janela do quarto que ocupava, em segundo andar'”.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Contra o amor

Chamo-a ainda uma vez, embora eu não queira, não possa admitir que ela esteja morta. De súbito, ferido da cabeça aos pés, pela visão da minha fraqueza absoluta, aceito a verdade e começo a viver no mundo sem Cecília. Puta que pariu! Nada. Rodeia a terra um hálito hediondo de peidos, de cus arrombados e sujos. Um círculo de papas, nus, as mitras inclinadas sobre um poço, os buracos voltados para o sol, vomitam no abismo. A vida: merda e breu. Futuro e sonho, certeza e segurança, fodam-se. Uma nuvem de pássaros escuros, vinda do mar, e multiplicando-se nos ares, cobre, por um momento, o sol; e uma noite breve, ilusória, escurece a praia e o mar. Freiras centenárias, de hábitos arregaçados, enfiam lixo e bosta na bucetas sangrentas. Um velho, com o rabo na areia, se esporra na mão. Mordo os ovos do engano e os cuspo, mastigados. Porra! Santas velhas, de chifres nos peitos, os brancos pentelhos negrejando de chatos, trepam com jumentos de membros possantes e com bodes, urrando orações negras. As pastoras, enrugadas, sujas, batem pandeiros feitos com o coro do meu saco, as bocas arrolhadas com caralhos. Destino puto e amargo. Levanto-me, olho em redor, vejo-me só. Então, fico de quatro, ponho a testa no chão, enfio os dedos nas beiradas do cu e brado, cago, brado, clamo para o mundo, puto, soluçando, puto da vida, falo pelo rabo, blasfemo pelo rabo, entre os dentes do buraco, que a terra come; cago no chão pela boca, todo eu me transformo em esgoto, cagando palavras. Falar é nada e ninguém mais me ouve, eu não me ouço; ninguém, mais ninguém.  

domingo, 24 de agosto de 2014

Saudade

- Você acha que lembraremos dessa noite?
- Prefiro não pensar nisso agora.
- Mas eu quero acreditar.
- Você complica demais. Estou aqui por sua causa também.
- Eu sinto, mas não sei explicar muito bem. Tenho a impressão de que há algo que nunca muda. Não poderia ser com a gente?
- Também quero lembrar, meu amor. Mas você tem certeza de que isso será bom? De que não mentiremos para nós mesmos?

- Eu não quero mudar e nem que você mude. Sei que é pedir muito. Mas o coração torna as coisas tão belas neste momento. Estamos juntos.

sábado, 23 de agosto de 2014

Intimidade

Ele entra e vê os seus olhos que se abrem. Ainda assim, está sozinho. Dependerá dele fazer alguma coisa. Lembra de seus momentos de solidão para se esconder. Mas chora quando é abraçado e torce para que não se lembre do que virá. 

O mal

Qual é o poder daquele que fere? Até quando ele acha que sairá ileso? Deus criou o psicopata? Algumas pessoas nasceram destinadas à morte e com poucas chances de amar a vida. Você mesmo, até sem saber, pode fazer parte disso. Sentimentos nem sempre são autênticos.  O que sobra, ao  menos, é fazer o bem mesmo que haja desprezo no coração.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Santa Teresa de Ávila - Fundações

Já em "Fundações", a edição que tenho, a da Edições Shalom, é uma tradução com linguagem simplificada, visando a um público menos exigente, que, especificamente, teria maior interesse em edificação espiritual do que cultural.

Eu queria ler esse livro para me inteirar de todo o itinerário percorrido por Santa Teresa até a escrita da considerada sua obra prima "Castelo Interior ou Moradas". Seria a pedra de toque para a composição do texto - e até de parte do espetáculo - do monólogo com que sonho me apresentar no ETA (Estúdio de Treinamento Artístico). Agora, me vejo em dúvida, por alguns dias, sobre devolver "Fundações", ou consultá-lo como documento do período - o mais dramático, inclusive - da vida de Teresa, no qual elaborou sua obra mais acabada.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Passos lentos

Anoitecer como em um eclipse; como se sentir em um presente nunca vivido, mas do qual nunca se duvidou. O tempo pode fazer o seu papel e o coração relaxar. Ainda não acabou, entretanto. O que fazer para cumprir um destino agora pressentido? Por mais que não se faça nada, já foi tomada a decisão. Pense que o tempo pode não te dar chance amanhã. Aconteça o que acontecer. E não adianta falar em dor. O coração pode se acelerar pelo dia seguinte, por muito tempo. Mas a noite não será esquecida. (Abençoada pelo sol que abraça).

Anoitecer

Nem sempre à luz e, mesmo, à bela sombra que se espera. Você também tem vontade disso ou daquilo. Pare para pensar ou apenas preste atenção em quem e no momento em que se pode fazer as coisas.

Mesmo as lembranças mais caras. Por mais que se queira se defender nelas, será uma mentira que se tornará vergonhosa. O tempo é maior do que as lembranças e, no fundo, não se quer acabar com ele. Não é questão de se fugir, apesar da dor. Os outros veem, quem você ama vê... e Deus vê. Pode ainda não ser questão de se escolher, pois isso já foi feito. O tempo está cobrando e ele pode ser a vida em um momento exato.

Senancour (Tradução e Adaptação de trecho de "Oberman")

"Minha situação é doce e eu levo uma vida triste. Estar aqui não pode ser melhor: livre, tranquilo, com saúde, sem interesses, indiferente quanto ao amanhã - de que não espero nada - e esquecendo sem pesar o passado que eu não vivi. Mas há em mim uma inquietude que não me deixa. É uma necessidade que eu não entendo, que me comanda, que me absorve, que me eleva além dos seres perecíveis... Vós vos engana, e eu engano a mim mesmo. Não é necessidade de amar. Há uma grande distância do vazio do meu coração ao amor que ele tanto almeja. Mas há um infinito entre isto que eu sou e isto que eu quero ser. O amor é imenso, mas não infinito. Eu não quero gozar; eu quero esperar. São necessárias paixões sem limites, que se distanciam para me enganar sempre. Que me importa o que pode acabar? Eu amo apenas o que parte, se aproxima, chega, mas não existe. Eu quero um sonho, uma esperança, enfim, que esteja sempre diante de mim, mas além de mim, maior que minha própria espera, maior que tudo aquilo que passa; maior que a vida e o mundo. (Deus não existe).

Santa Teresa de Ávila

"Tudo me parece sonho, o que vejo - e que é uma brincadeira - com os olhos do corpo. O que eu já vi com os olhos da alma é o que ela deseja e, quando se vê longe, isso é o morrer" (Santa Teresa de Ávila)


Esse é um trecho da autobiografia da católica e mística Santa Teresa de Ávila até perto de seus cinquenta anos, na segunda metade do século XVI. O texto foi pedido por seus confessores, mas tem valor literário que permite ao leitor não necessariamente religioso apreciá-lo. Em "As Fundações",  Santa Teresa discorre sobre a abertura de dezesseis mosteiros da Ordem Carmelita, as Descalças, obra que, cronologicamente, cobre a época posterior à fundação do primeiro mosteiro. Por fim, e,há quem diga, sua obra-prima, "O Castelo Interior ou As Moradas", descreve os sete níveis da alma em seu caminho para a perfeição espiritual, trabalho escrito a partir do estímulo de uma visão interior na véspera de um importante evento católico.
Quanto à minha leitura, pretendo terminar esse e obter os outros dois livros. A partir deles, quero compor o texto e o espetáculo de um monólogo. Mesmo que irregularmente, há anos que interpreto personas femininas em performances individuais. Recentemente, meu programa era desenvolver determinada imagem de Maria Madalena. Enquanto no texto "Salvação" - o qual consta nesse blog - esta mulher só intui a intensidade e a abrangência de sua união com Cristo, em Santa Teresa essa experiência é representada de modo muito mais objetivo. Ela refere visões de Cristo, anjos, demônios, companheiros religiosos já finados, a Virgem Maria, profecias de curas e mortes, etc. Chega a dizer da comunicação com boa parte desses entes. Digamos que o "Livro da Vida" é a obra que Maria Madalena não escreveu; e, essa é minha expectativa, parte da obra da mística é a expressão da vida interior perfeita, acabada no caminho escolhido por ela.                                                                                                                                                                                                                         

Salvação

De noite em minha cama, busco aquele a quem minha alma ama. Onde está o seu corpo?! Quem me devolve?! Eu queria tanto ficar com ele... Estávamos juntos e meu peito ardia. Meu amor tornou-se tão forte quanto o seu perdão. Mas não dava para falar isso. Todos queriam ficar com ele. Não dá para falar agora. É para pensar na morte.
Não consigo pensar direito e outras coisas despertam em mim. O espírito destroi a carne? O Espírito de Deus e do amor; a carne, o amor; eu toco o seu corpo; eu toco o corpo místico de Cristo.
A vida é curta e eu queria que meu coração sempre saltasse. Juntei-me a todos que perdiam a razão... O que há neste mundo?! Creio que há mistério. Tenho sede de infinito. Agora!
A vida passa, marca como pode. O amor? Alça-me, Senhor, ao teu mundo dentro do amor e da morte.