sábado, 30 de agosto de 2014

Leituras

                  Creio que no próximo mês concluirei a leitura de “Anna Kariênina, de Liev Tolstói. Após essa obra, vem “Irmãos Karamázov”, de Dostoiévski. Esses livros fazem parte de meu projeto de ler romances clássicos da literatura russa. Logo após “Karamázov”, leio “Crime e Castigo” e encerro.
Espero que esses meses me familiarizem com parte de uma cultura que produziu, em mais ou menos um século, poderosa impressão na Europa. Chega a ser inacreditável como, a partir da adesão da aristocracia russa ao iluminismo francês, eles devolveram para a Europa, em tão pouco tempo, um punhado de mestres: Chekhov, Turgueniev, Pushkin , Tolstói, Dostoiévski, Lérmontov , Gogol, etc.
No extenso romance histórico “Guerra e Paz”, Tolstói intercala, com as guerras da Rússia contra a França de Napoleão, a rotina intelectual, doméstica, cultural, religiosa e popular russa.
         A respeito de “Guerra”, eu me perguntava, enquanto obtinha informações básicas a respeito da operação de Napoleão, o que seu exército ficou fazendo, durante um mês, em uma Moscou que já não significava ponto estratégico na invasão. É patético, enquanto ele alimentava fantasias de grandeza, o fato de não virem ao seu encontro representantes de altas esferas militares – e creio que da aristocracia também – demonstrar sujeição ao seu gênio. O exército concentrou suas forças em outros pontos, não foi derrotado em Moscou. Uma das consequências de os franceses não terem aproveitado uma vitória que o inimigo parecia aceitar foi o afrouxamento da disciplina dos soldados que se juntaram à população no saque do que tinha sobrado da cidade. Após algum tempo, o exército francês se viu em tal situação que os soldados estavam torcendo para serem capturados como prisioneiros.
         Quanto à vida na corte, parecia impraticável a um membro da aristocracia não frequentar os bailes de sua classe social. Os militares ocupavam lugares de honra nesses eventos. O próprio rei, Pedro I, se ressentia de não ser um militar, e Napoleão se aproveitava disso para ironizar o rival.
                  Creio que não se avança em interpretar uma enorme quantidade de palavras do livro no sentido de criticar a vida de máscaras da corte. Os bailes eram uma necessidade. Dali eram desenvolvidos círculos de amigos por afinidades ou interesses, os jovens se conheciam, famílias eram constituídas, a cultura era apresentada e discutida, além de uma política de emergência, dado o constante estado de guerra que a Rússia se mantinha há décadas; enfim, estou falando de uma ocasião central para a manutenção de uma classe social num tempo um pouco distante da perda dos privilégios na Revolução de 1909.
Uma parte da inspiração do livro foi o conhecimento que Tolstói a respeito de um bilhete de um suicídio consumado. Cito o comentário de Rubens Figueiredo, tradutor da obra:
“Um vizinho de Tolstói e seu parceiro de caçadas, chamado Bíbikov, vivia com uma mulher de nome Anna, que se tornara sua amante. Aos poucos, ela a abandonou em troca da preceptora alemã de seus filhos, com quem tinha, até, intenção de casar-se. Em desespero, Anna recolheu alguns pertences, vagou pelo campo durante três dias, por fim, jogou-se debaixo de um trem. Antes, redigiu um bilhete para Bíbikov. ‘Você é o meu assassino. Seja feliz, se um assassino puder ser feliz. Pode ver o meu cadáver, nos trilhos da estação de Iássenki, se quiser’.

         Tolstói foi à estação, no dia seguinte, e presenciou a autópsia”

         Situação, condição humana, dramática, que se presta maravilhosamente ao discurso da Era da Psicologia, no julgamento de que a esposa foi fraca ao ponto de não assumir a responsabilidade por sua morte.  
Nos romances que li, eu não sei até onde Machado de Assis pode ter se desenvolvido na arte da ironia e da constituição da psicologia de complexas personagens quando penso em Kariênina. No fundo, não acredito – ou não entenda muito de - em crítica literária, e nem fiz doutorado a respeito de nosso escritor. Mas, apesar da perfeição e sutilezas da linguagem desenvolvida no que considero sua obra-prima, “Esaú e Jacó”; e, apesar do que julgo ser o seu melhor capítulo, o sonho acordado de Flora em ‘A grande noite’, “Anna Kariênina” é muito maior.

         Falei em me familiarizar com uma cultura, acima; no caso, a russa do século XIX. Mas posso ser honesto. Adaptando uma declaração constante em um curso de latim do odiado por muitos, Napoleão Mendes de Almeida, o que importa não é o que se faz com determinadas coisas, mas o que elas fazem conosco. É gratificante eu pensar isso. Um personagem pode ser maior que um ser humano que eu vejo na rua, ou aquele que abre para mim sua intimidade em seus aspectos até ridículos. Ou, ainda, aquele que me ensina. Um autor pode construir uma personagem a partir do que ele é, do que observa ao redor, nas outras pessoas, pelas reflexões que faz a respeito de determinadas coisas, do que é possível ele ser, entre outras possibilidades. Isso pode causar, no leitor, uma espécie de ilusão de experiência, de vivência; a literatura pode proporcionar experiência interior, fazer com que eu sinta a mim mesmo, que pense a respeito de mim, por exemplo, sobre coisas que só intuía; pode fazer com que eu tenha a forte ilusão de que posso ser mais ainda do que sou, não importa se para o bem ou para o mal.

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